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Reconfiguração do poder global em tempos de multipolaridade

A ordem internacional está passando por uma transformação profunda, na qual a centralidade dos Estados Unidos e de seus aliados europeus vem sendo gradualmente substituída por uma lógica de equilíbrio entre múltiplos polos de poder. Esse processo, mais estrutural do que conjuntural, tem como protagonistas países como China, Índia, Rússia, Arábia Saudita, Irã e Indonésia, entre outros do chamado Sul Global. A disputa pelo novo desenho do poder global extrapola a geopolítica tradicional e se materializa em esferas como cadeias produtivas, moedas, tecnologia, sistemas de governança e até mesmo na formulação de valores e visões de mundo concorrentes.

A ascensão da China é um dos pilares mais visíveis desse novo cenário. Pequim não apenas expandiu sua influência econômica e diplomática, como também propôs alternativas explícitas à ordem liberal liderada pelo Ocidente. A Nova Rota da Seda, renomeada como Iniciativa do Cinturão e Rota, já conecta mais de 150 países com investimentos em infraestrutura, energia e logística. Mas o projeto vai além da economia: ele embute uma visão de interdependência baseada em “ganha-ganha”, distinta do modelo liberal de mercado. Em 2023, a China lançou a chamada Iniciativa de Civilização Global, que promove princípios como respeito mútuo entre civilizações e rejeição à imposição de valores universais, em claro contraste com a narrativa ocidental sobre democracia e direitos humanos.

A Índia, por sua vez, busca se afirmar como um polo autônomo, com forte ênfase em tecnologia e diplomacia multilateral. Sob a liderança de Narendra Modi, Nova Délhi tem ampliado suas alianças com países asiáticos, africanos e latino-americanos, participando ativamente do BRICS+, do G20 e da Organização de Cooperação de Xangai. O governo indiano defende uma multipolaridade com características próprias, promovendo uma ordem internacional mais inclusiva e pluralista, sem alinhar-se completamente a nenhum dos blocos tradicionais.

A Rússia, apesar das sanções ocidentais decorrentes da guerra na Ucrânia, também segue desempenhando papel central nesse novo xadrez global. Moscou tem reforçado suas parcerias estratégicas com países asiáticos, africanos e latino-americanos, e promovido a ideia de um mundo multipolar em seus discursos oficiais. O discurso russo associa a multipolaridade à soberania nacional e à recusa das “regras baseadas na ordem liberal”, frequentemente apontadas como instrumentos de dominação do Ocidente. Em fóruns como o BRICS e o Fórum Econômico de São Petersburgo, a Rússia defende abertamente o uso de moedas locais e a desdolarização das trocas comerciais como forma de resistir à hegemonia financeira americana.

Países do Golfo, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Catar, têm adotado uma postura pragmática e cada vez mais assertiva. Além de expandirem investimentos em energia renovável, tecnologia e indústria, esses países têm mediado conflitos regionais e buscado maior autonomia em relação às potências ocidentais. A recente entrada da Arábia Saudita e dos Emirados no BRICS+ é indicativa de uma reorientação estratégica. Esses países passaram a diversificar seus parceiros, estreitando laços com China, Rússia e Índia, sem necessariamente romper com os Estados Unidos — uma abordagem que exemplifica o realinhamento multipolar.

A África também vem assumindo maior protagonismo. Países como Etiópia, Nigéria, África do Sul e Angola têm atraído investimentos asiáticos e árabes, ao mesmo tempo em que questionam sua marginalização nas instituições multilaterais. A entrada da Etiópia no BRICS+ e as recentes cúpulas China-África e Rússia-África demonstram o crescente reconhecimento do continente como ator estratégico no século XXI.

Na esfera tecnológica, a fragmentação das cadeias globais de valor é um reflexo direto da nova configuração do poder. As tensões entre China e Estados Unidos em torno dos semicondutores, da inteligência artificial e das telecomunicações aceleraram processos como o “friend-shoring” e o “decoupling”, estratégias de realocação industrial que visam reduzir a dependência de rivais geopolíticos. Ao mesmo tempo, países como o Vietnã, Indonésia, Malásia, Brasil e Turquia vêm se beneficiando dessas novas dinâmicas, tornando-se centros de produção alternativos.

O campo financeiro também está em transição. A hegemonia do dólar vem sendo desafiada por iniciativas como o uso do yuan em transações bilaterais, a criação de mecanismos alternativos de pagamento entre países do BRICS e o fortalecimento de bancos multilaterais como o Novo Banco de Desenvolvimento. Embora o dólar ainda seja dominante, há sinais claros de que o sistema financeiro global se move lentamente em direção à multipolaridade, especialmente após o congelamento de reservas internacionais russas pelos Estados Unidos, o que gerou receios em outros países quanto à segurança de manter grandes volumes em ativos americanos.

Em termos de governança, novas instituições e coalizões vêm ganhando força. A Organização de Cooperação de Xangai, por exemplo, já abrange mais de 40% da população mundial e atua em temas como segurança, energia e conectividade regional. O BRICS+, com sua ampliação recente, passou a representar mais de 45% da população global e uma parcela significativa do PIB mundial, superando o G7 em paridade de poder de compra. Essas iniciativas visam criar uma governança internacional mais representativa, na qual os países do Sul Global tenham maior voz e protagonismo.

A construção de um mundo multipolar não é isenta de contradições e rivalidades. Há tensões entre os próprios polos emergentes, divergências internas e limitações estruturais. No entanto, o processo parece irreversível. A pluralização do poder, das normas e das visões de mundo está remodelando profundamente a política internacional. Independentemente de crises pontuais ou mudanças de governo, a multipolaridade já se apresenta como a nova moldura estrutural do sistema internacional no século XXI.