
A Síria é um país moldado por sua diversidade. Lar de árabes sunitas, alauítas, xiitas, drusos, cristãos e curdos, entre outros grupos, sua identidade se construiu ao longo dos séculos em meio a tensões e períodos de convivência pacífica. No entanto, a complexidade dessa estrutura social se tornou um dos fatores centrais da guerra civil que devastou o país por mais de uma década. O conflito não apenas aprofundou divisões internas, mas também transformou a Síria em um campo de disputa entre grandes potências globais, cada uma buscando influenciar seu futuro. Este artigo percorre essa trajetória, explorando primeiro as minorias que compõem a sociedade síria, depois os desdobramentos da guerra e, por fim, o papel das potências mundiais na luta pelo controle da região.A Síria é um mosaico de grupos étnicos e religiosos que moldaram sua história e influenciaram os rumos do país ao longo dos séculos. Com uma população majoritariamente árabe sunita, o país abriga diversas minorias, cada uma com suas crenças, tradições e relações complexas entre si. O entrelaçamento dessas comunidades ajudou a formar a identidade síria, mas também gerou tensões políticas e sociais que se intensificaram durante a guerra civil.
O mosaico de minorias
Os alauítas, uma ramificação do islamismo xiita, compõem cerca de 10% da população síria e desempenharam um papel central no governo desde a ascensão de Hafez al-Assad ao poder, em 1971. A crença alauíta incorpora elementos do islã, do cristianismo e de tradições esotéricas, incluindo a reencarnação e a adoração de figuras como Ali, primo e genro do profeta Maomé. Durante séculos, os alauítas foram marginalizados na sociedade síria, mas sua situação mudou drasticamente quando a família Assad assumiu o poder e fortaleceu sua presença no exército e na política. Esse domínio gerou ressentimento entre os sunitas, que compõem cerca de 70% da população e se viam excluídos das esferas de decisão.
Os xiitas, embora numericamente inferiores, compartilham afinidades religiosas com os alauítas e receberam apoio direto do Irã e do Hezbollah libanês durante a guerra civil. Diferente dos alauítas, os xiitas seguem uma doutrina islâmica mais ortodoxa, baseada nos doze imãs reverenciados pelo xiismo duodecimano. Seu papel na Síria esteve ligado principalmente às milícias organizadas para proteger santuários xiitas e combater grupos sunitas rebeldes. A aliança estratégica entre Assad, o Irã e o Hezbollah reforçou o poder dos xiitas no país, mas também os colocou no centro do conflito sectário.
Os drusos, que representam cerca de 3% da população síria, formam uma comunidade fechada e seguem uma fé esotérica derivada do islã ismaelita, com forte influência neoplatônica e grega. Suas crenças incluem a reencarnação e a ênfase na interpretação pessoal da fé, o que os distingue das correntes islâmicas tradicionais. Historicamente, os drusos tentaram manter uma posição neutra nos conflitos sírios, mas ocasionalmente se aliaram a diferentes lados para garantir sua sobrevivência. Sua principal base é a região montanhosa de Sweida, no sul do país, onde buscaram autonomia e evitaram envolvimento direto na guerra.
Os cristãos sírios, que antes do conflito representavam cerca de 10% da população, pertencem a diversas denominações, incluindo ortodoxos, católicos e assírios. Com uma presença milenar na região, os cristãos desempenharam um papel significativo na cultura e na economia síria. Durante o regime de Assad, muitos cristãos apoiaram o governo por temerem o extremismo islâmico, o que os colocou em uma posição vulnerável diante dos grupos rebeldes. A guerra resultou em um êxodo significativo de cristãos, especialmente após a ascensão do Estado Islâmico, que os perseguiu violentamente.
Os curdos, o maior grupo étnico não árabe da Síria, compõem cerca de 10% da população e vivem principalmente no norte e nordeste do país. Embora a maioria seja muçulmana sunita, muitos curdos seguem tradições culturais distintas e algumas comunidades praticam o yazidismo, uma fé sincrética que combina elementos do zoroastrismo, do islã e do cristianismo. A guerra civil síria permitiu que os curdos estabelecessem uma administração autônoma na região de Rojava, onde tentaram implementar um modelo de governança descentralizada e igualitária. No entanto, suas aspirações entraram em conflito com a Turquia, que considera os grupos curdos sírios aliados de organizações separatistas em seu próprio território.
Outras minorias incluem os ismaelitas, uma vertente xiita que se distingue pelo foco em interpretações filosóficas do islã, e os turcomanos, um grupo de língua turca que historicamente oscilou entre lealdades ao governo sírio e à Turquia. As relações entre essas comunidades variam conforme o contexto político e as alianças regionais, mas a guerra civil acentuou divisões sectárias que antes eram menos evidentes.
A Síria é um país onde identidade religiosa, étnica e política se entrelaçam de maneira única, criando um ambiente de coexistência e conflito. O futuro do país dependerá de como essas comunidades poderão se reorganizar e encontrar um equilíbrio entre suas diferenças, garantindo direitos e representação para todas as minorias.
Escalada de violência na Síria pós-Assad
A Síria atravessa um período de transição complexo desde a queda do regime de Bashar al-Assad em dezembro de 2024. A deposição de Assad, que governou o país por mais de cinco décadas, resultou de ofensivas coordenadas por grupos de oposição, notadamente o Hayat Tahrir al-Sham (HTS), apoiado por outras facções rebeldes e pelo Exército Nacional Sírio, com suporte da Turquia.
A diversidade étnica e religiosa da Síria é significativa, com árabes sunitas representando a maioria. Entretanto, o país abriga diversas minorias, como alauítas, cristãos, curdos, drusos e ismaelitas. Historicamente, os alauítas, grupo ao qual pertencia Assad, ocuparam posições de destaque no governo e nas forças armadas. Os curdos, concentrados no norte e nordeste, buscaram maior autonomia, estabelecendo administrações locais durante o conflito. Comunidades cristãs e drusas também desempenharam papéis distintos na sociedade síria, contribuindo para a riqueza cultural do país.
Com a queda de Assad, um governo interino foi estabelecido, liderado por Mohammed al-Bashir, chefe do Governo de Salvação da Síria. O HTS declarou que as instituições públicas seriam temporariamente mantidas pelo primeiro-ministro sírio, Mohammad Ghazi al-Jalali, até que uma transição política completa fosse finalizada. Al-Jalali expressou esperança de que a Síria pudesse se tornar “um país normal” e começar a se envolver diplomaticamente com outras nações.
Atualmente, a Síria enfrenta desafios significativos. Recentemente, uma insurreição nas províncias costeiras de Latakia e Tartus, regiões com predominância alauíta, resultou em mais de 1.300 mortes, incluindo cerca de 830 civis dessa minoria. Testemunhas e organizações não governamentais relataram massacres de civis, incluindo crianças, perpetrados por forças de segurança. Esses eventos levaram milhares de alauítas a buscar refúgio no Líbano, exacerbando a crise humanitária na região.
A comunidade internacional expressou preocupação com a escalada da violência. Líderes globais convocaram reuniões de emergência para discutir a crise síria, enfatizando a necessidade de proteger os civis e promover a estabilidade. A ONU e várias potências ocidentais mostraram interesse em apoiar a transição, desde que sejam garantidos os direitos de todos os cidadãos e mantida a paz.
O futuro da Síria permanece incerto. A estabilidade do país dependerá da capacidade do governo interino de incluir todas as comunidades no processo político, garantindo direitos e representatividade. A reconstrução econômica e a reintegração dos deslocados internos e refugiados serão cruciais para o progresso nacional. Além disso, a definição do papel das diversas milícias e grupos armados será determinante para assegurar um ambiente seguro e propício ao desenvolvimento.
A comunidade internacional desempenhará um papel vital nesse processo, oferecendo suporte humanitário, mediando diálogos políticos e contribuindo para a reconstrução do país. A cooperação regional será essencial para estabilizar a Síria e promover a paz no Oriente Médio.
Em suma, a Síria enfrenta um caminho árduo em direção à recuperação. A inclusão das minorias, a estabilização política e a reconstrução econômica serão pilares fundamentais para a construção de um futuro pacífico e próspero para todos os sírios.
A Síria no tabuleiro mundial
A queda do regime de Bashar al-Assad, em dezembro de 2024, transformou a Síria em um campo de disputas geopolíticas, evidenciando os interesses e as limitações das grandes potências envolvidas no conflito. Durante os 13 anos de guerra civil, atores como Rússia, Estados Unidos, Irã e Turquia desempenharam papéis cruciais, moldando o curso dos acontecimentos e influenciando o futuro do país.
Rússia: aliado secisivo e recuo estratégico
Desde o início do conflito, a Rússia emergiu como um dos principais apoiadores do regime de Assad. Em 2015, Moscou interveio militarmente, estabelecendo bases e fornecendo suporte aéreo que permitiu ao governo sírio recuperar territórios estratégicos. Essa presença consolidou a influência russa no Mediterrâneo Oriental e reafirmou seu papel como potência global.
Contudo, a eclosão da guerra na Ucrânia em 2022 desviou recursos e atenção de Moscou, limitando sua capacidade de sustentar operações simultâneas. A redução do apoio militar russo enfraqueceu o regime sírio, culminando na ofensiva bem-sucedida do grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS) e na subsequente queda de Assad. Esse desdobramento expôs as limitações das ambições globais da Rússia e questionou sua capacidade de manter projeções de poder em múltiplos teatros de operação.
Estados Unidos: política de contenção e desafios futuros
A postura dos Estados Unidos na Síria oscilou entre intervenções diretas e estratégias de contenção. Inicialmente, Washington apoiou grupos rebeldes moderados e liderou coalizões contra o Estado Islâmico (EI). Entretanto, a complexidade do conflito e a presença de múltiplos atores dificultaram uma estratégia coesa.
Com a queda de Assad, a administração do presidente eleito Donald Trump enfrenta dilemas sobre o nível de envolvimento na reconstrução da Síria e na contenção de grupos extremistas. Embora Trump tenha manifestado aversão a “guerras intermináveis”, a realidade no terreno pode exigir uma reavaliação das políticas americanas para garantir que o vácuo de poder não seja preenchido por facções hostis aos interesses ocidentais.
Irã: perda de um eixo estratégico
O Irã investiu significativamente na manutenção do regime de Assad, vendo na Síria um corredor vital para o Hezbollah no Líbano e uma extensão de sua influência no Levante. Milícias apoiadas por Teerã e recursos financeiros foram direcionados para sustentar Assad.
A derrocada do governo sírio representa um revés estratégico para o Irã, que perde uma rota logística crucial e vê sua posição regional fragilizada. Além disso, a pressão econômica interna e os conflitos com Israel limitam a capacidade de Teerã de projetar poder e influenciar os desdobramentos na Síria pós-Assad.
Turquia: ascensão como potência regional
A Turquia, compartilhando uma extensa fronteira com a Síria, adotou uma política assertiva desde o início do conflito. Ankara apoiou diversos grupos rebeldes e conduziu operações militares para conter ameaças curdas e do EI. A recente ofensiva do HTS, com suporte turco, e a queda de Assad ampliaram a influência de Ancara na região, posicionando-a como uma potência-chave na definição do futuro político sírio.
Perspectivas Futuras: um tabuleiro geopolítico em transformação
A ausência de Assad inaugura uma nova fase na geopolítica do Oriente Médio. A Rússia enfrenta o desafio de manter sua presença militar e influência na Síria sem um aliado confiável no poder. Os Estados Unidos ponderam seu papel na reconstrução e na prevenção do ressurgimento de grupos terroristas. O Irã busca alternativas para preservar sua estratégia regional, enquanto a Turquia capitaliza suas conquistas para moldar a política síria conforme seus interesses.
A comunidade internacional observa atentamente os desdobramentos, ciente de que a estabilidade da Síria é vital para a segurança e a prosperidade do Oriente Médio. A coordenação entre as grandes potências será essencial para evitar um vácuo de poder que possa ser explorado por atores maliciosos e para garantir uma transição política inclusiva que atenda às aspirações do povo sírio.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X