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A lógica das assinaturas na ordem internacional

Hoje em dia, a maioria das pessoas entende bem o modelo de assinatura aplicado a serviços digitais. Quem usa plataformas como Netflix, Spotify ou mesmo aplicativos de produtividade já está familiarizado com a lógica: existe uma versão gratuita, com limitações, e uma versão paga, mais completa, que oferece benefícios exclusivos. Quem quer acesso total, sem anúncios, com qualidade superior e mais funcionalidades, precisa pagar ou atender determinadas condições.

Esse mesmo raciocínio passou a estruturar, de forma bastante visível, a política externa dos Estados Unidos sob o governo Trump em seu segundo mandato. No centro dessa nova lógica está uma ideia simples: os países que desejam manter acesso privilegiado ao mercado americano, a investimentos estratégicos ou à proteção diplomática devem aceitar certas condições impostas por Washington. Caso contrário, ficam com a “versão gratuita”, marcada por restrições, tarifas elevadas e perda de acesso aos mecanismos de influência mais vantajosos.

Trata-se de uma forma de hierarquizar o relacionamento internacional: quem se submete às regras americanas, sobe de categoria. Quem resiste, é empurrado para as margens do sistema. Essa abordagem rompe com o discurso tradicional de multilateralismo e regras simétricas para todos, substituindo-o por uma estrutura de lealdades negociadas e vantagens condicionadas.

O Japão é um exemplo emblemático desse novo modelo. Em meados de 2025, Tóquio firmou um acordo com Washington que resultou em uma tarifa de 15% sobre produtos japoneses — abaixo das ameaças iniciais de 30% — em troca de compromissos substanciais. O Japão concordou em realizar investimentos bilionários nos Estados Unidos, abrir parte de seu mercado agrícola e adotar uma postura de alinhamento comercial mais clara em relação à China. O governo japonês, apesar de resistências internas, optou por pagar o “plano premium” para evitar perdas maiores. Na prática, comprou estabilidade e previsibilidade, ao custo de certa submissão.

A Coreia do Sul seguiu caminho parecido. Diante da escalada de tarifas americanas, o país negociou uma revisão do tratado bilateral com os EUA, aceitando aumentar sua importação de produtos agrícolas americanos e flexibilizar normas para empresas de tecnologia dos Estados Unidos atuarem em território coreano. Como recompensa, conseguiu isenções parciais nas novas tarifas e reafirmação do apoio militar americano na região. Ou seja, pagou em concessões comerciais para manter sua assinatura ativa — e com bônus geopolíticos incluídos.

Outro caso significativo é o Paquistão, que, mesmo sem a força econômica dos vizinhos asiáticos, aceitou um acordo que previa vantagens tarifárias para seus produtos têxteis e agrícolas, em troca da eliminação de barreiras digitais e do acolhimento de empresas americanas em setores estratégicos. Washington deixou claro que o benefício comercial viria somente se o país seguisse certas diretrizes — e Islamabad decidiu entrar no programa.

Na direção contrária, países que rejeitaram o pacote de condições proposto pelos EUA têm experimentado o peso do modelo “gratuito”. O Brasil, por exemplo, viu-se alvo de tarifas de até 25% em setores como aço, alumínio e carne, após resistir a propostas de alinhamento mais firme com os interesses comerciais e políticos dos EUA. Brasília optou por não pagar o preço exigido, o que significou ficar numa zona de acesso restrito, com penalidades crescentes e negociações emperradas.

O mesmo tem ocorrido com diversos países da África, América Latina e Sudeste Asiático que ainda não formalizaram acordos com os Estados Unidos dentro do novo modelo. Muitos se veem excluídos de qualquer preferência tarifária, enfrentando um sistema de barreiras elevadas e a impossibilidade de competir com os países que aceitaram os termos americanos. Em agosto de 2025, ao menos 60 países não haviam assinado acordos bilaterais e, por isso, entraram automaticamente na lista de nações sujeitas às tarifas plenas de 30% para produtos industriais e agrícolas.

Mesmo parceiros históricos, como os países da União Europeia, se viram diante de uma bifurcação. O bloco resistiu a aceitar as condições impostas por Washington, especialmente no que diz respeito a endossar as sanções unilaterais americanas contra a Rússia e a China. Em resposta, os EUA impuseram tarifas pesadas a produtos europeus, sobretudo os do setor automotivo e de tecnologia verde. Posteriormente, parte da UE negociou um acordo com tarifas reduzidas para 15%, mas sem abandonar completamente a autonomia diplomática — um meio-termo desconfortável, que revela os limites da nova lógica de submissão.

Essa estrutura de recompensas e punições transforma profundamente a forma como os Estados Unidos se relacionam com o mundo. Não se trata mais de promover uma ordem baseada em princípios universais de livre comércio ou cooperação multilateral. Trata-se de um sistema em que cada país é tratado como um assinante em potencial: se aceitar os termos, terá acesso a vantagens. Se resistir, pagará o preço da exclusão.

Esse modelo traz ganhos imediatos para Washington, que consegue negociar acordos bilaterais vantajosos, atrair investimentos e preservar sua primazia econômica. Mas carrega também um risco de médio e longo prazo: ao tratar aliados e parceiros como usuários subordinados, pode estimular o surgimento de coalizões alternativas, fomentar ressentimentos e minar a legitimidade da liderança americana. Tal como ocorre com serviços de streaming, o excesso de restrições e exigências pode fazer os usuários buscar alternativas — mesmo que menos convenientes.

O mundo de hoje, ao contrário dos anos 1980, oferece uma diversidade de plataformas geopolíticas: China, Índia, blocos regionais, acordos sul-sul. Os Estados Unidos ainda detêm o controle do “streaming principal”, mas a proliferação de novas assinaturas está em curso. O quanto isso vai redesenhar a hierarquia global dependerá de como os países calculam o custo do plano premium. E de até onde os EUA estarão dispostos a cobrar, antes que o mercado canse.

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