
A recente reconfiguração da política externa da China para a América Latina revela uma mudança de postura que vai muito além da diplomacia econômica. Em vez de priorizar unicamente o comércio e os investimentos bilaterais, Pequim adota agora uma estratégia mais ampla e institucionalizada para consolidar sua influência regional, aproveitando os espaços deixados por uma presença americana cada vez mais errática e reativa. O movimento é discreto, porém ambicioso: consolidar uma presença estrutural na região que sirva tanto aos interesses econômicos chineses quanto à sua projeção global como potência alternativa aos Estados Unidos.
No centro dessa transformação está a ativação renovada do Fórum China–CELAC, mecanismo multilateral que reúne os países da América Latina e do Caribe sob uma agenda comum de cooperação com a China. Durante a mais recente rodada de reuniões, Pequim anunciou a liberação de uma linha de crédito equivalente a mais de 50 bilhões de reais, destinada a projetos de infraestrutura, energia, conectividade e desenvolvimento social. Não se trata de uma oferta pontual, mas de uma sinalização: a China deseja ocupar o lugar de parceiro estruturante da região, não apenas de comprador de commodities.
A lógica por trás desse movimento não é difícil de entender. A América Latina é estratégica para a China por três razões principais: oferece recursos naturais essenciais para sua indústria, como lítio, cobre e alimentos; proporciona mercados consumidores em expansão; e, sobretudo, representa um espaço geopolítico vital em que Pequim pode desafiar diretamente a hegemonia tradicional dos Estados Unidos sem confrontos militares. Ao construir pontes, ferrovias, portos e centrais elétricas, a China não apenas cria vínculos comerciais, mas finca raízes físicas e institucionais em países que, até recentemente, dependiam quase exclusivamente do capital e da diplomacia americana.
A reorientação da política chinesa na região é também uma resposta direta ao aumento da hostilidade dos Estados Unidos. A imposição de tarifas, o endurecimento das normas comerciais e a instrumentalização ideológica da política externa americana, especialmente durante os governos de Donald Trump e Joe Biden, criaram um vácuo que a China tem se mostrado disposta a ocupar. Governos latino-americanos que enfrentam dificuldades de financiamento junto a instituições ocidentais, muitas vezes por causa de exigências condicionadas a políticas de austeridade, encontram em Pequim uma alternativa menos intrusiva — ao menos em aparência.
Diferente da abordagem ocidental, que costuma envolver auditorias, condicionalidades e fiscalização política, o modelo chinês de cooperação oferece dinheiro rápido, promessas de não interferência e discursos de “ganha-ganha”. Isso ressoa positivamente em países como Bolívia, Nicarágua, Venezuela e mesmo na Argentina, onde as restrições financeiras internacionais convivem com governos que buscam preservar autonomia política. O pragmatismo chinês, nesses casos, é visto como mais útil do que os compromissos morais oferecidos por Washington ou Bruxelas.
Mas a mudança vai além do pragmatismo financeiro. A China também tem investido em moldar institucionalmente sua relação com a América Latina. Em vez de depender apenas de acordos bilaterais, o governo de Xi Jinping aposta na criação de mecanismos multilaterais que normalizem sua presença e tornem sua influência mais difícil de ser revertida. O Fórum China–CELAC, nesse sentido, é o espelho latino-americano do que Pequim já fez na África e no Sudeste Asiático: criar estruturas paralelas às instituições dominadas pelos Estados Unidos, reforçando uma ordem internacional multipolar com traços orientais.
Essa institucionalização permite que a China ganhe legitimidade regional e dificulte a pressão americana. Afinal, ao se associar a organismos multilaterais, Pequim se apresenta não como potência invasora, mas como parceira multilateral que respeita a soberania dos países envolvidos. Isso limita o espaço de ação diplomática de Washington, que se vê diante de uma região que começa a falar coletivamente com Pequim — e não apenas por canais bilaterais frágeis e instáveis.
Há, contudo, riscos e tensões embutidos nessa nova configuração. Um dos principais é o endividamento crescente de países latino-americanos com bancos chineses. Embora o discurso oficial seja o da cooperação mútua, já existem casos de infraestrutura inconclusa, pagamentos suspensos e renegociações tensas — como ocorreu no Equador, na Venezuela e em partes da África. Além disso, o crescente controle chinês sobre setores estratégicos — como mineração, energia e transporte — desperta receios quanto à soberania econômica dos países receptores.
Outro ponto de fricção está na assimetria tecnológica. A dependência de equipamentos, softwares e know-how chineses pode limitar o desenvolvimento de capacidades autônomas na América Latina, reforçando uma relação de subordinação estrutural, embora com novos protagonistas. O caso das redes 5G é emblemático: enquanto os EUA pressionam governos a banirem a Huawei por questões de segurança, a China avança com acordos e vendas de equipamentos em países como Brasil, México e Chile.
Mesmo com essas tensões, a ofensiva chinesa tem encontrado terreno fértil. A desilusão com os Estados Unidos, agravada pela indiferença durante a pandemia de covid-19 e pelo descaso histórico com a América Latina, criou um ambiente em que Pequim aparece como parceiro mais confiável, ou pelo menos mais presente. A doação de vacinas, os empréstimos emergenciais e o fornecimento de equipamentos médicos durante a crise sanitária consolidaram uma imagem positiva da China, ainda que instrumental.
A nova estratégia chinesa para a América Latina, portanto, não é apenas comercial. Ela articula infraestrutura, diplomacia multilateral, crédito e imagem pública. Visa não apenas ganhar contratos, mas moldar alianças. Ao disputar corações e mentes — e carteiras — de governos latino-americanos, a China desafia abertamente o privilégio histórico dos Estados Unidos na região. A disputa não é mais apenas por mercados ou recursos, mas por protagonismo no desenho de uma nova ordem mundial.
Resta à América Latina compreender que, entre as ofertas que chegam do Norte e do Leste, existe um espaço de autonomia que só será preenchido com planejamento, capacidade de negociação e visão estratégica. Sem isso, a região corre o risco de apenas trocar um centro de dependência por outro — e repetir velhos ciclos com novos rostos.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
