
A proposta em análise pelo União Europeia (UE) de utilizar ativos russos congelados para apoiar a Ucrânia instala‑se no cerne de um debate que vai além da guerra em si: envolve o futuro das regras do direito internacional, da imunidade dos Estados e do precedente que poderá ser criado caso a medida avance. O que se pretende — quem participa da discussão — e por que tal proposta suscita fortes reservas jurídicas e políticas.
Desde o início da invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022, diversos Estados ocidentais congelaram ativos da Rússia — incluindo títulos do banco central russo, reservas e outros ativos financeiros. Atualmente, a UE discute converter esse “congelamento” em mecanismo de apoio direto à Ucrânia — por meio de um empréstimo ou uso dos rendimentos desses ativos — ou mesmo de sua “utilização” para fins ucranianos.
Entre os que defendem essa iniciativa estão vários Estados‑membros da UE que consideram que a Rússia deve arcar financeiramente com os prejuízos causados à Ucrânia e que os ativos parados são “recursos disponíveis” para esse fim. A Comissão Europeia elaborou propostas de mecanismo de “empréstimo” de cerca de € 140 bilhões — apoiado nos ativos congelados russos — para atendimento das necessidades ucranianas em 2026‑27.
Ainda assim, há divisão interna: países como Bélgica — que abriga grande parte dos ativos russos congelados — manifestam cautela e exigem garantias legais antes de avançar.
Do ponto de vista jurídico, porém, a iniciativa avança em terreno arriscado. A doutrina internacional do direito dos Estados tem como pilar que ativos soberanos gozam de imunidade contra execução judicial e, por analogia, contra medidas de confisco por outro Estado, salvo condições excepcionais.
Especialistas lembram que a imunidade estatal combina com o princípio de que medidas de reparação ou de responsabilidades de Estado devem obedecer a processos previstos — não simplesmente à apelação unilateral por “sofrimento causado”.
Se a UE adotar mecanismos que permitam a utilização permanente desses ativos para beneficiar a Ucrânia, abre‑se um precedente: qualquer Estado que se considere vítima de atos de outro aliado poderia, motivado por razões políticas ou militares, demandar ou aprovar uso de ativos soberanos “congelados” ou “riveados” para seus próprios fins. Isso mudaria substancialmente a previsibilidade do sistema internacional, em que a inviolabilidade da propriedade soberana e a estabilidade das finanças internacionais dependem de regras claras.
Outro ponto: a distinção entre “congelamento” (retirar uso temporário dos ativos) e “confisco” (transferência permanente ou reivindicação como própria) é central. “Congelar” tem respaldo — outros Estados costumam fazer sanções e imobilizações temporárias. Mas a movimentação de ativos para outro Estado como compensação ou empréstimo, sem o consenso do titular original, levanta forte oposição ao direito internacional.
Há riscos práticos também:
- Fusões entre jurisdições, litígios massivos e insegurança jurídica para investidores e sistemas financeiros que veem precedentes de expropriação de ativos soberanos.
- Risco de retaliação: a Rússia já qualificou propostas de uso desses ativos como “roubo” e ameaça litígios prolongados.
- Potencial fragilização da confiança em mercados e instituições financeiras europeias, especialmente se bens de bancos centrais ou reservas forem utilizados com fins políticos.
Embora o objetivo declarado — apoiar a Ucrânia frente à agressão — seja fortíssimo e confirme a gravidade do conflito, a proposta da UE representa um desafio ao arcabouço do direito internacional, à estabilidade das relações entre Estados e ao princípio de que ativos soberanos não podem ser apropriados unilateralmente. A decisão que será tomada poderá redefinir o que significa “resposta de Estado” em casos de agressão futura, tanto para a Ucrânia como para qualquer outro país que venha a reclamar reparações ou benefícios em conflito internacional.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
