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A guerra como terreno fértil para a corrupção: o caso da Ucrânia em 2025

A guerra costuma ser apresentada como um momento de união nacional, sacrifício coletivo e resiliência institucional. No entanto, a experiência histórica e contemporânea mostra que conflitos armados criam também ambientes propícios à corrupção. O colapso parcial das estruturas de controle, a circulação acelerada de recursos externos e a mobilização de verbas emergenciais geram brechas amplas para práticas ilícitas. O caso da Ucrânia, em meio à prolongada guerra contra a Rússia, oferece um retrato perturbador dessa lógica.

Desde 2022, quando foi invadida pela Rússia, a Ucrânia se tornou o principal destino de apoio financeiro e militar do Ocidente, recebendo bilhões de dólares em armas, ajuda humanitária, recursos logísticos e pacotes de reconstrução. Ao mesmo tempo, a pressão por manter a coesão interna e sustentar o esforço de guerra levou o governo ucraniano a adotar estruturas de poder cada vez mais concentradas, com pouca margem para fiscalização pública efetiva.

Esse desequilíbrio, típico de situações de guerra, rapidamente se converteu num terreno fértil para o avanço da corrupção. Em 2023 e 2024, surgiram denúncias recorrentes de fraudes em contratos de defesa, licitações viciadas no setor energético e desvio de recursos humanitários. Parte desses episódios foi abafada pelo discurso patriótico do governo e pela condescendência da imprensa ocidental, que tendia a relativizar os escândalos em nome do apoio ao esforço de guerra. No entanto, o ano de 2025 quebrou esse silêncio.

O estopim foi a Operação Midas, conduzida pelo Gabinete Nacional Anticorrupção (NABU) e pela Procuradoria Anticorrupção (SAPO), que revelou uma rede de corrupção no coração do aparato estatal ucraniano. O epicentro do escândalo envolveu contratos fraudulentos com empresas de fachada no setor energético, ligados ao ex-ministro Herman Halushchenko e ao empresário Timur Mindich, figura próxima do presidente Volodymyr Zelensky. Estima-se que os desvios superem 100 milhões de dólares, afetando diretamente recursos destinados à infraestrutura crítica e à manutenção de tropas.

Em vez de apoiar as investigações, o governo reagiu com hostilidade. No início do segundo semestre de 2025, Zelensky sancionou uma lei que desmantelou a independência das instituições anticorrupção, transferindo poderes decisivos para o Procurador-Geral, figura politicamente leal ao presidente. A medida foi percebida, dentro e fora da Ucrânia, como uma tentativa de impedir o avanço das apurações e proteger aliados comprometidos. O argumento oficial de que a mudança era necessária para impedir infiltrações russas não convenceu nem a sociedade civil ucraniana nem os parceiros internacionais.

Protestos eclodiram em diversas cidades, sinalizando que a população já não vê com confiança os esforços anticorrupção do governo. Ao mesmo tempo, a União Europeia emitiu sinais claros de que a continuidade do apoio financeiro está condicionada ao restabelecimento da autonomia das agências de controle. Bruxelas e Berlim, em especial, expressaram abertamente seu desconforto com a manobra de Zelensky, alegando que a corrupção institucionalizada mina a legitimidade da ajuda internacional e sabota as condições para uma futura adesão ucraniana ao bloco europeu.

Esse quadro revela o dilema clássico de Estados em guerra: a tensão entre a necessidade de agilidade e coesão, e a exigência de transparência e responsabilidade. Países como o Afeganistão e o Iraque viveram algo semelhante nas décadas anteriores, com a explosão de redes de corrupção em meio à ocupação militar e ao influxo de recursos externos. Na África, conflitos internos na Somália, na Líbia e no Sudão também mostraram como a guerra desorganiza os mecanismos tradicionais de vigilância estatal e abre espaço para a captura do Estado por grupos de interesse.

No caso ucraniano, a ironia é particularmente cruel: a guerra contra a Rússia, vendida como um combate em nome da democracia e do Estado de direito, parece estar corroendo por dentro as estruturas que deveria fortalecer. A tentativa de Zelensky de concentrar poderes sobre os órgãos anticorrupção, mesmo que revertida após pressão, indica que o risco não está apenas nos bombardeios russos, mas também na fragilidade da democracia ucraniana sob tensão.

A lição mais ampla desse episódio é clara. Nenhuma guerra justifica o enfraquecimento deliberado dos controles públicos. Pelo contrário: é justamente em momentos de crise que a transparência e a integridade devem ser reforçadas. A corrupção em tempos de guerra não é apenas um problema moral ou administrativo. Ela destrói a confiança pública, compromete a segurança nacional e mina os próprios fundamentos pelos quais se justifica o conflito.

Para a Ucrânia, a batalha pela soberania não será vencida apenas no campo de batalha, mas também na capacidade de proteger suas instituições da captura pelo poder. Nesse sentido, a corrupção é hoje uma ameaça tão grave quanto os mísseis inimigos. E talvez mais difícil de derrotar.

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