ISSN 2674-8053

Conflito EUA-Irã: bravatas de Trump e riscos para Otan e Brasil

O ano de 2020 apenas começou e o presidente estadunidense Donald Trump já fez o mundo tremer. Em 03 de janeiro último as forças armadas dos Estados Unidos executaram uma ousada e espetacular operação militar no entorno do aeroporto internacional de Bagdá no Iraque. Os mísseis lançados por uma aeronave não tripulada e operada de solo americano – o MQ-9 Reaper, ou ceifador – culminaram na morte de seis pessoas, entre elas o todo-poderoso Major General iraniano Qassim Soleimani e o Primeiro-tenente iraquiano e paramilitar foragido Abu Mahdi al Muhandis. O assassinato de Soleimani coloca fim a um breve hiato de paz no Iraque e descortina uma nova etapa do conflito no Oriente Médio. Chefes de estado e governo, oficiais militares e legações diplomatas ao redor do mundo se mostraram estarrecidos com a ameaça iminente de guerra causada pela ousadia e imprudência de Trump[i]. Com sua arriscada operação, os EUA procuram recuperar o controle do território iraquiano e enfraquecer o Irã. No entanto, até agora, a operação militar dos EUA somente confirmou o modus operandi de seu presidente e indica quais mudanças ele quer para a Otan. No que diz respeito ao nosso país não seria uma surpresa se no médio prazo Trump e a política externa do atual governo brasileiro – caso ambos governos se mantenham no poder – venham levar tropas brasileiras para o meio da zona armada no Oriente Médio.

O conflito Estados Unidos-Irã: uma pesada herança deixada pelo século 20

O século 20, marcado por duas guerras mundiais, deixou o pesado conflito Estados Unidos-Irã para o século 21. O mundo atual dominado por valores ocidentais e embalado por ondas de disrupções tecnológicas tem enorme dificuldade em entender e lidar com esse “choque de civilizações”, como Samuel Huntington cunhou há 30 anos[ii]. Trata-se de um conflito complexo que envolve disputas econômicas – esta situado em cima de algumas das maiores reservas de petróleo do mundo – e político-religiosas – entre regimes de democracia liberal e teocracia democrática. Além dos aspectos cultural, econômico e político o embate EUA-Irã continua uma disputa civilizacional imemorial entre o Ocidente e o Oriente Próximo cujas origens remontam às guerras Medas entre as cidades-Estados gregas e a Pérsia durante a antiguidade.

Na história contemporânea, no entanto, o embrião do conflito Estados Unidos-Irã se formou com a revolução islâmica no Irã em 1979. De lá para cá, e com o fim da guerra fria entre EUA e União Soviética, a República Islâmica do Irã se tornou o principal antagonista da grande potência ocidental – ainda que a principal ameaça econômica-militar para a hegemonia dos EUA nos dias de hoje seja a China. Em diversas ocasiões o grande líder da revolução islâmica, o Aiatolá Ruhollah Khomeini, anteviu que o destino do Irã seria o de confrontar os Estados Unidos. Em 1 de janeiro de 1989, por exemplo, Khomeini endereçou uma célebre carta a Mikhail Gorbachev anunciando o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e do comunismo e o advento do Islã como força hegemônica mundial[iii]. A ideologia do comunismo ainda existe pelo mundo e o islamismo no ocidente ainda não ocupou o lugar de prominência um dia ocupado pelo marxismo no século 20, mas Khomeini acertou ao antevir três anos antes o colapso da URSS e também a escalada da importância do confronto entre Irã e os EUA.

Os dois países jamais chegaram a se enfrentar diretamente, mas vêm desde então travando guerras paralelas na região do Golfo e Levante. Nos anos 80 os dois países se enfrentarem indiretamente por meio do Líbano e Iraque, país que virou um verdadeiro tabuleiro de disputa entre as duas nações. Imediatamente após a revolução de 1979, o Irã teve que se desdobrar para conter os avanços impetuosos de Saddam Hussein ao seu território no conflito conhecido por Guerra Irã-Iraque (1980-1988). O Irã sempre acusou os EUA de incentivarem e apoiarem a invasão pelo Iraque de Saddam Hussein ao seu território. Logo em seguida veio a primeira Guerra do Golfo Pérsico (1990-1991) quando os Estados Unidos tiveram que deter Saddam Hussein em sua impulsiva invasão ao Kuwait. Doze anos depois veio a segunda Guerra do Golfo, também conhecida como Guerra do Iraque, em março de 2003. Uma guerra que sofreu intensa oposição mundial e foi iniciada sob uma espessa cortina de fumaça levantada pelo governo de George W. Bush – com o falso pretexto da existência de armas de destruição em massa. Apesar da rápida queda do regime Baath de Saddam Hussein seguida de sua eventual captura e execução, os EUA não conseguiram instalar no Iraque o tão sonhado e propagado regime político liberal aos moldes ocidentais que fosse ao mesmo tempo estável e pró-ocidente. A retirada de boa parte das tropas americanas tardou e só ocorreu em 2011, mas somente três anos depois o Iraque foi acometido por um novo conflito. A proclamação do difuso califado do Estado Islâmico em territórios do Iraque e Síria levou o Iraque a uma guerra civil que duraria até 2017. Neste último episódio um curioso – mas não inédito – cenário se deu, os dois rivais históricos – EUA e Irã – entraram num acordo tácito para combater os jihadistas do Estado Islâmico. Enquanto os EUA se ocupavam de bombardeios aéreos as milícias xiitas lideradas por paramilitares iranianos se ocupavam das operações terrestres. Mais curioso ainda foi que a chegada ao poder de Donald Trump contribuiu de maneira efetiva para a derrota do Estado Islâmico, produzindo um hiato de paz no Iraque. Neste cenário de “paz iraquiana” quem de fato tinha nas mãos as rédeas do poder político, religioso e econômico eram os xiitas aliados aos iranianos. Mas, como isso acontecera?

A guerra do Iraque iniciada por G.W. Bush serviu como um convite para o Irã adentrar clandestinamente o Iraque. Os oficiais da República Islâmica não vacilaram com o vácuo de poder deixado pela queda do regime de Saddam Hussein e pela desorganizada ação americana. Agentes especiais iranianos foram dominando o país por intermédio de lideranças religiosas, politicas e militares xiitas iraquianas – vale lembrar que 70% da população iraquiana é xiita. O grande arquiteto da escalada iraniana no controle do Iraque foi o enigmático e influente Soleimani.

Soleimani, ou a eminência parda

O Major General Qassem Soleimani foi o comandante da Força Jerusalém – mais conhecida por Força Qods de Sepāh-e Qods em farsi – grupo de elite do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica. Nenhuma outra palavra define melhor o papel de Soleimani no Oriente Médio do que a locução ‘eminência parda’: indivíduo com muita influência na vida política ou em outra atividade qualquer, mas que permanece anônimo, que não se mostra nem age claramente. Soleimani era muito próximo do grande Aiatolá Ali Khamenei e teve destacado protagonismo em ações militares clandestinas por todo o Oriente Médio e Ásia Meridional ao longo das últimas duas décadas[iv]. Ele era muito próximo de oficiais militares no Iraque, Síria e Líbano e também dispunha de laços de amizade com importantes líderes políticos e religiosos como, por exemplo, Hassan Nasrallah do Hizbollah libanês, do clérigo iraquiano Muqda al-Sadr e do Grande Mufti da Síria Ahmad Hassoun. Soleimani foi fundamental na recondução das forças militares de Bashar al-Assad na Síria.

A morte do Major General Soleimani deixa grande parte dos analistas políticos do ocidente completamente desnorteados, pois muito pouco se sabe de fato sobre a estrutura interna de poder no Irã e não há meios de prever como sua morte virá a afetar o curso da história no país, no Oriente Médio e no mundo. Como a morte da principal figura militar do Irã e tido por muitos como o segundo homem mais poderoso do país – atrás apenas do Líder Supremo Aiatolá Khamenei – afetará as tomadas de decisões e disputas internas de poder? Sua proximidade com Aiatolás e clérigos dentro e fora do Irã e sua proeminência na articulação de operações internacionais clandestinasprovocavam ciúmes e medo em muitos, dentro e fora do Irã. Sua morte foi ao mesmo tempo lamentada e celebrada por muitos. Apesar de sua popularidade entre a população iraniana e os xiitas no Oriente Médio ele não foi uma unanimidade entre oficiais iranianos e talvez o conhecimento desta informação tenha encorajado o bombardeio que o assassinou.

O pavio aceso: The Intercept (de Glenn Greenwald) ataca novamente

Em novembro de 2019 o site The Intercept e o The New York Times publicaram um explosivo dossiê de reportagens intitulado The Iran Cables baseado em um vazamento massivo e inédito de documentos preparados entre 2014 e 2015 por oficiais iranianos operando dentro e fora do país e ligados ao Ministério de Inteligência e Segurança do Irã[v]. Baseado nas informações contidas em mais de 700 páginas de documentação em farsi sobre a participação do Irã e Estados Unidos no combate ao Estado Islâmico no Iraque, o dossiê dá mostras da profunda infiltração do governo de Teerã no Iraque, controlando efetivamente aspectos políticos e econômicos. O avanço iraniano no território iraquiano começou junto com a invasão dos EUA no Iraque em março de 2003, mas o aprofundamento do domínio se deu com a gradual retirada da presença americana do país. Muitos dos oficiais militares iraquianos que haviam prestado serviços à Agência Central de Inteligência (ou CIA no acrônimo no inglês), com a retirada dos americanos, passaram gradualmente a colaborar com o serviço de inteligência iraniano, dando informações cruciais sobre a atuação dos EUA no Iraque. Os documentos também apresentavam provas da já conhecida influência de Soleimani, mas revelaram também informações totalmente novas para o ocidente.

Soleimani, ou a esfinge persa: “decifra-me ou devoro-te”

Se por um lado a documentação enviada ao The Intercept confirmou que o Major General Soleimani era o cérebro por detrás da atuação iraniana no Iraque, por outro ficaram expostas as críticas internas que ele recebia. Apesar de seu inegável domínio da situação no Iraque e de seus poderosos aliados, as estratégias de Soleimani vinham sendo duramente contestadas nas altas esferas de poder do Irã. Alguns oficiais do Ministério pediam limites às violentas ações levadas a cabo pelos homens de Soleimani no Iraque, isso porque as ações comandadas por iranianos no Iraque suscitavam sentimentos anti-Irã entre a população sunita iraquiana. Ademais, os sunitas vinham sendo alvos de severos atos de abusos por parte dos xiitas iraquianos, por vezes associados a presença iraniana. Além disso, a documentação revela que existia rivalidade entre oficiais do Ministério de Inteligência e Segurança do Irã e membros da Força Qods liderada por Soleimani e também declarações enciumadas sobre o papel exercido e o poder desempenhado por Soleimani na região. Entre as queixas ficou em destaque a aproximação de Soleimani com oficiais e políticos da Turquia como o ex-primeiro ministro e diplomata turco Ahmet Davutoğlu  e o também diplomata Hakan Fidan, o poderoso e influente ex- chefe da Organização Nacional de Inteligência da Turquia.

A dificuldade em atacar Soleimani sempre esteve apoiada na questão de decifrá-lo ou entendê-lo em toda sua complexidade. No ocidente a figura do Major General era entendida apenas por meio de limitadas fontes de informações e interpretada por indivíduos que por vezes desconheciam como as entranhas do poder da Republica Islâmica do Irã de fato funcionam. As revelações contidas nos documentos vazados para o The Intercept trouxeram à luz as contestações de altos oficiais iranianos às ações de Soleimani e muito provavelmente foram cruciais para a tomada de decisão do governo Trump em eliminá-lo.

Os ataques de 3 de Janeiro: gerar instabilidade para negociar, não guerrear

Apesar de controverso e altamente arriscado, o ousado e bem executado ataque americano em Bagdá deu claras demonstrações ao Irã da capacidade de inteligência e tecnologia militar dos EUA. Como escrito pelo ex-embaixador britânico na Arábia Saudita e especialista em assuntos do Oriente Médio, John Jenkins: os EUA mostraram ao Irã que não são um tigre de papel[vi]. A verdade é que os EUA têm evitado o confronto direto com o Irã há anos, pois os riscos sempre foram incalculáveis. Para os EUA o cenário ideal para o fim do conflito seria a auto-implosão do regime, como no caso da União Soviética ou seu gradual desfalecimento, como no caso da Cuba Castrista. O ex-Secretário de Estado americano John Kerry – equivalente ao nosso Ministro das Relações Exteriores – recentemente declarou que o assassinato de Soleimani sempre foi uma opção militar, mas devido aos incalculáveis riscos jamais foi tido como uma opção válida[vii].

A ousadia de Trump e seus generais tornou a situação do Irã incerta e perigosa. É inegável que a morte do General gera um vazio temporário na cúpula do comando militar iraniano dentro e fora do país. Restituir a capacidade de comando de Soleimani levará tempo. Ainda que o novo comandante das Força Qods, o General de brigada Esmael Ghanni, tenha tanta experiência e prestígio quanto seu colega, ele não dispõe do carisma e vínculos pessoais de seu antecessor e fica a dúvida, portanto, do quão respeitado ele será[viii]. Ghanni sofrerá temporariamente com um hiato em sua autoridade seja no Irã ou fora dele e isso deverá afetar as ações militares do país.

A estratégia do Irã: a vingança é um prato que se come frio

Dois dias após o assassinato de Soleimani o prestigiado jornalista inglês Robert Fisk assinou um artigo no The Independent opinando que com o assassinato do Major General iraniano, Trump havia optado pela guerra, não de maneira acidental, mas planejada[ix]. No entanto, Fisk adverte a seus leitores que o Irã luta um tipo diferente de guerra. Sempre que agredido o Irã optou pela cautela, retardando deliberadamente seu revide.

Neste duelo o Irã é inegavelmente o azarão, não podendo enfrentar-se de igual para igual com o poderio americano. Além disso, na eventualidade de um confronto direto o Irã não contará com aliados do mesmo calibre dos que estarão juntos dos EUA. Desde o início dos anos 80 o Irã se tornou o grande mestre da guerra desigual por meio de ataques indiretos, clandestinos e pontuais. Oficiais iranianos operando a Força Qods são os cérebros por detrás das operações clandestinas no exterior. Eles ajudaram a criar o Hizbollah no Líbano justamente para atacar os EUA e eventualmente expulsa-los do país[x]. O Irã também se fez valer de ataques pontuais, como por exemplo o ataque à embaixada americana em Beirute no Líbano em abril de 1983 e às embaixadas americana e francesa no Kuwait em dezembro do mesmo ano. Entre 1985 e 1986 o Irã também esteve envolvido em doze ataques terroristas em Paris por causa de um conflito na negociação de prisioneiros políticos. Ao longo das últimas quatro décadas o Irã tem se mostrado resiliente e astuto, mas jamais enfrentou um cenário tão adverso como o atual de pesadas sanções econômicas e uma agressão frontal ao seu principal oficial militar.

O Irã sentiu o golpe: resposta imediata com operação desastrosa

As primeiras retaliações do Irã vieram quase imediatamente com os lançamentos de mísseis a bases militares americanas no Iraque, área natural de conflito e tabuleiro da batalha, e com a derrubada de um avião civil em Teerã. As contradições sobre a derrubada do avião  dão mostras de brechas abertas, seja dentro dos comandos ou da capacidade operacional das forças militares do Irã. O verdadeiro motivo para a derrubada do avião é até agora insondável, mas a revelação por fontes externas de que mísseis tenham abatido a aeronave e o reconhecimento oficial com justificativa de erro humano fragiliza e descredita a capacidade da divisão aérea da Guarda Revolucionária Islâmica, além de levantar sérias suspeitas. Eventuais hipóteses alternativas sobre o que de fato aconteceu podem vir a fomentar as fileiras de dissidentes políticos dentro e fora do país. Alguns protestos estudantis já se formaram nas principais universidades de Teerã, em parte porque algumas das vítimas ucranianas eram ex-alunos das universidades.

No curto prazo a estratégia de Trump pela morte de Soleimani pode gerar fortes ondas de instabilidade política ao país por meio de manifestações populares contra o regime dos aiatolás e ocasionarem em uma eventual fragilização no posicionamento do Irā. No entanto, além de alguns protestos isolados em universidades de Teerã, até agora o que se viu e ouviu nas ruas das principais cidades do Irã foram massas multitudinárias entoando palavras de ordem de apoio a república islâmica acompanhadas de cânticos de louvor a Alá, ao Corão e ao profeta Maomé e enaltecendo o mais novo mártir islâmico: Qassim Soleimani[xi]. Ainda que o governo iraniano mantenha o apoio da maioria da população e os protestos sob controle, o Irã enfrenta uma situação inédita, pois nunca teve que lidar com um presidente americano tão imprevisível e arrogante como Donald Trump.

A estratégia de Trump: abrir negociações com bravatas e agressões

A principal estratégia de Trump em suas negociações tem sido atacar e na sequência negociar. Por ser um negociador agressivo, Trump não se constrange agindo fora do protocolo. Ao buscar melhores condições de negociação Trump não se intimida em fazer valer o poder econômico-militar dos EUA, mas corre grandes riscos em tais demonstrações de força. É o que ele fez com o líder norte coreano Kim Jong-un e em sua guerra-comercial particular com os chineses. No caso do Irã, Trump deu início a sua estratégia de confronto em maio de 2018, ao retirar os EUA do Plano de Ação Conjunto Global (PACG) – acordo internacional para controle do programa nuclear iraniano formulado pelo governo de Barak Obama e assinado em conjunto por EUA, Irã e os cinco países do conselho de segurança da ONU junto com a Alemanha e União Europeia. Apesar da saída dos EUA, os demais países signatários optaram por se manter no acordo. Seis meses depois, Trump colocou pesadas sanções econômicas contra o Irã. Embora as sanções tenham afetado negativamente as exportações, o crescimento econômico e o valor da moeda nacional do Irã, o governo se manteve firme em sua posição de não voltar a negociar com os Estados Unidos sobre seu programa nuclear, negando inclusive a iniciativa proposta pelo presidente francês Emanuel Macron de colocar o chanceler iraniano Mohammad Javad Zarif com representantes do governo Trump durante a cúpula do G7 em agosto passado, em Biarritz na França. Com o assassinato de Soleimani, Trump de forma arriscada levou sua estratégia de confronto ao limite, buscando intimidar seu adversário e medir sua capacidade de resposta. Dias após o ataque, Trump declarou via Twitter que o assassinato do Major General  foi “para evitar a guerra, não para começar uma”.

Ainda que pelas redes sociais Trump declare evitar a guerra contra o Irã, no mundo real o presidente dos EUA age de maneira imprudente e espetaculosa, dando claros sinais de não entender com quem negocia. Os xiitas são notórios por não comprometerem seus princípios e historicamente não costumam assumir compromissos com seus inimigos – o que fazia do PACG de Obama uma enorme conquista americana apesar das críticas. O que Trump quer do Irã? Ele busca duas concessões; em primeiro lugar quer que o Irã diminua sua influência e atuação no Oriente médio; em segundo precisa que o Irã assine um novo acordo que limite suas ambições nucleares e balísticas. Para avançar nesses dois pontos Trump terá que percorrer um caminho longo e tortuoso. A grande pergunta que paira no ar é: no curto e médio prazo para onde poderá desembocar esta tentativa forçada de Trump em enquadrar o regime Iraniano?

O paradoxo de Trump e o papel da Otan

Trump não mente quando diz que prefere evitar uma guerra com o Irã, mas há um paradoxo em dois de seus objetivos relacionados ao Irã. Trump busca conter o Irã e diminuir a presença de tropas americanas em zonas de conflito. Uma de suas principais promessas de campanha foi justamente a retirada de tropas americanas do Oriente Médio. O custo político com vítimas fatais e feridos em guerra são altíssimos para os Estados Unidos[xii]. No entanto, a retirada dos EUA do território iraquiano deixaria espaço para que o Irã domine o país completamente e o transforme em uma segunda república islâmica – o que seria inaceitável não somente para os EUA, mas também para Israel e até mesmo para os sauditas. Já há alguns anos, o especialista Jonathan Paris em uma conferência sobre Soleimani, indicava que os EUA teriam que substituir sua presença militar no Iraque por uma coalisão internacional[xiii]. O presidente dos EUA também já deu indicações que deseja posicionar o país como liderança estratégica e tecnológica, diminuindo a presença de tropas americanas em operações terrestres. O desejo de formar uma aliança ocidental de contenção ao Irã e dos grupos fundamentalistas islâmicos no Oriente Médio pode ser um dos motivos pelo qual o presidente dos EUA tem falado tanto em reformar a Aliança Atlântica, mais conhecida por Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan ou Nato do acrônimo em inglês). A bravata de Trump ao assassinar Soleimani intimida e preocupa não somente o Irã, mas todo o mundo. Trump parece que vai utilizar a ameaça de guerra com o Irã para manipular seus aliados ocidentais a se engajarem na reforma da Otan.

Desde sua campanha presidencial em 2016, Trump tem expressado severas críticas à Otan e como presidente tem sido rígido e ameaçando retirar os EUA da organização[xiv]. Entre suas principais demandas está a exigência pelos comprometimentos orçamentários em despesas militares por parte de países membros [xv]. As reformas que Trump sinaliza querer para a Otan vão muito além do cumprimento de obrigações orçamentarias. Ele indica uma reforma radical ampliando o espaço de atuação da Otan para “fora da área” no jargão dos diplomatas e oficiais da organização, como indica o fuzileiro naval americano aposentado e ex-Comandante Supremo Aliado da Otan James Stavridis[xvi]. Outra aparente pretensão de Trump para a Otan seria a entrada de novos membros, gerando condições que os EUA possa exercer a aventada liderança estratégica de coalisões internacionais em diversas frentes pelo globo. Recentemente Trump deu uma pista muito concreta sobre o que pensa para o futuro da Otan ao sugerir que aliados atuem no Oriente Médio, inclusive sugerindo de maneira muito peculiar um novo acrônimo: Nato-ME (do inglês North Atlantic Treaty Organization-Middle East)[xvii].

Como esse conflito pode vir a afetar o Brasil?

As ondas sísmicas causadas pelo aumento da tensão do conflito EUA-Irã não tardarão em chegar ao Brasil. A consequência imediata será no aumento no preço de combustíveis, como costuma acontecer em todo conflito no Oriente Médio. Ainda que os mercados tenham reagido de maneira moderada ao assassinato de Soleimani, com o aumento da tensão militar na região alguns analistas já preveem cenário de alta no preço do barril do petróleo em 2020[xviii]. Uma segunda possibilidade, esta de médio prazo e mais grave, é que o Brasil possa ser levado a zonas de combate no Oriente Médio – supondo que Donald Trump se reeleja e que o atual governo brasileiro continue no poder. A entrada do Brasil no conflito poderia se dar como um dos integrantes de uma coalisão de países aliados atuando no Oriente Médio.

Em março passado durante a visita do presidente brasileiro à Casa Branca, Trump ventilou a possibilidade remota de que o Brasil se tornasse um membro da organização. Muitos jornalistas e especialistas desdenharam da fala de Trump ao insinuar que o presidente americano desconheça os limites geográficos do Oceano Atlântico Norte[xix]. Poucos meses depois, os EUA designaram o Brasil como aliado extra-Otan sob a justificativa de “reconhecimento pelos compromissos recentes do governo do Brasil em aumentar a cooperação no setor de defesa com os EUA”. Tal desígnio autoriza também a realização de manobras conjuntas entre as duas Forças Armadas[xx]. Os responsáveis pela política externa e de defesa do atual governo brasileiro deveriam considerar os riscos associados à aliança incondicional com os EUA tendo em vista a possível reeleição de Trump e as ousadas reformas que ele planeja para a Otan e para o mundo.


[i] Amaro Silvia, “World leaders call for calm after Iranian attack on US forces”, CNBC, 8 de janeiro de 2020 https://www.cnbc.com/2020/01/08/world-leaders-react-to-iran-attack-on-us-bases-in-iraq.html

[ii] Samuel P. Huntington, 2010, O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial, São Paulo: Ponto de Leitura.

[iii] Carta enviado pelo Aiatola do Irã Ruhullah al-Musawi al-Khomeini para o então Secretário Geral da União Soviética Mikhail Sergeyevich Gorbachev, em inglês : https://www.al-islam.org/call-divine-unity-letter-imam-khomeini-president-mikhail-gorbachev-imam-khomeini/letter

[iv] Dexter Filkins, “The Shadow Commander”, The New Yorker, 23 de setembro de 2013 https://www.newyorker.com/magazine/2013/09/30/the-shadow-commander

[v] James Risen, Tim Arango, Farnaz Fassihi, Murtaza Hussain, Ronen Bergman, Jeremy Scahill, Betsy Reed, Vanessa Gezari, Roger Hodge, “The Iran Cables”, The Intercept and The New York Times, 18 de novembro de 2020  https://theintercept.com/series/iran-cables/

[vi] John Jenkins, “Iran must decide when to drink its new ‘cup of poison’ ”, ArabNews, 8 de janeiro de 2020 https://www.arabnews.com/node/1610111

[vii] John Kerry em entrevista dada para a rede MSNBC, “Kerry: Other Admins Considering Killing Soleimani, But Cost Too Great”, 8 de janeiro de 2020, The Last Word, MSNBC https://www.youtube.com/watch?v=FT936RI6RVo

[viii] Maysam Behravesh, “Esmail Ghaani: Who is the new commander of Iran’s Quds Force?”, TRTWORLD, 13 de janeiro de 2020  https://www.trtworld.com/opinion/esmail-ghaani-who-is-the-new-commander-of-iran-s-quds-force-32902

[ix] Robert Fisk, ‘War more by design than by accident as Trump goes straight for the jugular’, The Independent, 13 de janeiro de 2020. https://www.independent.ie/opinion/comment/robert-fisk-war-more-by-design-than-by-accident-as-trump-goes-straight-for-the-jugular-38834827.html

[x] Ryan C. Crocker, “The Long Battle With Iran ”, The New York Times, 5 de janeiro de 2020   https://www.nytimes.com/2020/01/05/opinion/Soleimani-iran-trump.html

[xi] “Huge crowds across Iran gather to mourn top general Soleimani”, France24, 7 de janeiro de 2020 https://www.france24.com/en/video/20200107-huge-crowds-across-iran-gather-to-mourn-top-general-soleimani

[xii] Zvi Bar’el, “Iraq Is a Costly Burden for Trump, but Troops Withdrawal Would Be Worse”, 10 de janeiro de 2020 https://www.haaretz.com/us-news/.premium-iraq-is-a-costly-burden-for-trump-but-troops-withdrawal-would-be-worse-1.8378751

[xiii] Jonathan Paris, “Learning from Qassem Soleimani”, Fathom Forum, Fathom Journal, 30 de Abril de 2018 https://www.youtube.com/watch?v=8HCxP2i2qDE

[xiv] Julian E. Barnes e Helene Cooper, “Trump Discussed Pulling U.S. From NATO, Aides Say Amid New Concerns Over Russia”, The New York Times, 14 de Janeiro de 2019 https://www.nytimes.com/2019/01/14/us/politics/nato-president-trump.html

[xv] “OTAN afirma que apenas 7 membros destinam 2% do PIB a despesas militares”, EFE, 25 de junho de 2019 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2019/06/25/otan-afirma-que-apenas-7-membros-destinam-2-do-pib-a-despesas-militares.htm

[xvi] James Stavridis, “Trump’s Right That NATO Can Step Up Against Iran”, Bloomberg, 10 de janeiro de 2020  https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2020-01-10/trump-s-right-that-nato-can-step-up-against-iran

[xvii] “Trump proposes ‘NATOME’: NATO expanded to Mideast”, Associated Press, 9 de janeiro de 2020  https://www.youtube.com/watch?v=6f3ODUYwfz8

[xviii] Simon Watkins, “Is Iran Preparing To Send Oil Back To $100? ”, OilPrice.com, 14 de janeiro de 2020 https://oilprice.com/Energy/Oil-Prices/Is-Iran-Preparing-To-Send-Oil-Back-To-100.html#

[xix] Rick Noack, “Trump misunderstands NATO so badly, he thinks Brazil could be part of it”, 20 de março de 2019, The Washington Post  https://www.washingtonpost.com/world/2019/03/20/trump-misunderstands-nato-so-badly-he-thinks-brazil-could-be-part-it/

[xx] “Estados Unidos designam Brasil como aliado extra-Otan”, Deutsche Welle reproduzido pela AgênciaBrasil, 1 de agosto de 2020, http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2019-08/estados-unidos-designam-oficialmente-brasil-como-aliado-extra-otan

Jonas Rama
Economista com mais de dez anos de experiência internacional e estudos realizados na França (Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne e École Normal Supérieure), Argentina (Universidad de Buenos Aires) e Estados Unidos (PSU).