O Estadão de hoje replica matéria do New York Times segundo a qual o Presidente Joe Biden declarou ontem, 14/04, o fim da presença das tropas dos Estados Unidos no Afeganistão, encerrando o engajamento de vinte anos dos EUA na luta pela pacificação do país e desmantelamento da militância talibã, que já lhes custou mais de US $ 800 bilhões e a vida de 2.218 militares. Segundo o anúncio, os últimos 2,5 mil soldados americanos deixarão o Afeganistão até o dia 11 de setembro, data simbólica, aliás, quando se celebram os vinte anos da invasão ordenada por George W. Bush. Biden afirmou que “sou o quarto presidente a chefiar a presença de tropas no Afeganistão. Dois republicanos. Dois democratas…não vou passar essa responsabilidade para um quinto. É hora de acabar com a guerra mais longa da América. É hora de as tropas voltarem para casa”.
Os países-membros da “Organização do Tratado do Atlântico Norte” decidiram acompanhar a iniciativa dos americanos. Segundo comunicado da organização, “os aliados da OTAN decidiram nesta quarta-feira (14/04) começar a retirar forças da “Missão de Apoio Resoluto no Afeganistão” até 1º de maio, com o plano de concluir a tarefa dentro de poucos meses”. O Secretário-Geral da OTAN, Jens Stoltenberg, afirmou que “a retirada será feita de maneira ordeira, coordenada e ponderada”. E acrescentou “we went into Afghanistan together, we have adjusted our posture together, and we are united in leaving together”.
A pergunta que não quer se calar é se depois de tantos – e traumáticos – anos de presença no solo afegão, será este o melhor momento para esta iniciativa, aliás defendida por D.T.? Vale recordar que no ano passado, acatando a opinião dos radicais “afeganofóbicos” que consideravam que as autoridades de Cabul não tinham o controle do país, o então-presidente dos EUA empenhou-se por um encontro com a liderança talibã. Esta reunião, como recordamos, teve lugar em fevereiro, em Doha. Na ocasião, os negociadores americanos, liderados pelo enviado especial, Zalmai Khalilzad, e os talibãs pelo Mullah Abdul Ghani Baradar, firmaram um acordo pelo qual os EUA reduziriam o efetivo das suas tropas para 8.600 soldados e haveria a troca entre os cinco mil militantes talibãs encarcerados nas prisões americanas e os mil ocidentais detidos pelos talibãs. Na ocasião D.T elogiou entusiasticamente a iniciativa, lembrando que ela era uma promessa sua de campanha. Biden deu um passo além: declarou o fim da guerra e formalizou a retirada das tropas. Restará somente um contingente mínimo, para manter a segurança dos órgãos oficiais dos Estados Unidos no país.
Vamos rever um pouco esta história…
Em primeiro lugar o acordo de Doha, firmado na presença de líderes do Paquistão, Catar, Turquia, Índia, Indonésia, Uzbequistão e Tajiquistão, foi alcançado sem a participação – na verdade à revelia – das autoridades de Cabul. O presidente afegão, Ashraf Ghani, que não participou do processo, discordou publicamente de se estabelecer um cronograma acelerado para a partida das tropas. Ele afirmou, também, que a libertação de qualquer prisioneiro deveria ser decisão do seu governo e que não estava pronto a autorizá-la até que se desbloqueiem as discussões internas com o seu Primeiro-Ministro e principal oponente na cena política, Abdullah Abdullah, sobre o compartilhamento do poder no país. Ghani tem a seu favor a evidência de que, encorajados desde o acordo com o governo de D.T. – que exigia o compartilhamento do poder em Cabul -, os talibãs intensificaram sua campanha de assassinatos e ataques terroristas.
Como se vê, o “buraco é mais profundo”. O cerne da questão – fundamental – reside em como se comporão as várias etnias que conformam a malha populacional, à luz da história recente – e conturbada – do país. Afinal, o que é ser afegão? E qual seria a ideia de “Nação” subjacente à de “Estado”, diante da herança do colonialismo? Onde se encaixariam os talibãs neste frágil “status quo”?
O Afeganistão é um emaranhado de etnias e tribos com características civilizacionais próprias, orgulhosas de suas raízes e de sua história. Existem quatro grandes grupos étnicos no território: tajiques, hazaras, usbeques e o maior deles, os pashtuns, que interagem, por sua vez, com as tribos/etnias menores: aimaqs, turcomanos, beluchis, pashais, nuristanis, gujars, árabes, pamiris, quirguizes e sadats, etc., igualmente ciosos da sua estirpe. Conclusão: a pacificação só acontece quando a “Jirga” – a assembleia dos líderes tribais – se reúne e chega a um consenso que atenda a todos.
Esta é, no fundo, a razão pela qual o universo político afegão não consegue conviver com o modelo ocidental de governança, seja presidencialista ou até mesmo o parlamentarismo formal. Fora do consenso qualquer acordo é praticamente inviável. É por esta razão que se frustrou a “imposição” pelos ocidentais do regime presidencialista no país: o escolhido, o Presidente Hamid Karzai, nunca presidiu de fato, e tampouco dominou a cena política, ainda que membro da etnia dominante pashtun.
E é por isto que permanece a disputa de liderança entre o atual Presidente, Ashraf Ghani, pashtun, e o Primeiro-Ministro Abdullah Abdullah, tajik. Os talibãs, de sua parte, se recusam a se envolver nesta questão e tampouco acatam a presidência de Ghani, que consideram “um fantoche dos ocidentais”. Neste cenário, a fraqueza do governo e as divisões internas dariam vantagem, segundo os especialistas, aos talibãs em qualquer acordo de compartilhamento de poder, principalmente depois que as forças americanas e aliadas partirem. É aí que reside o desafio: é muito duvidoso que o talibã, seja no poder, ou como parceiro no poder, seja capaz de controlar os outros grupos armados de oposição, sobretudo os conspícuos remanescentes do Estado Islâmico.
Para melhor situar a questão, devemos reconhecer que o caos político reinante no Afeganistão está umbilicalmente vinculado à herança insidiosa da manipulação colonial estrangeira e das chamadas “guerras por procuração”, que deram alimento a formas particulares da divisão étnica do país, antes, durante e depois da invasão soviética, em 1971. Foi este caos e as disputas interétnicas que abriram espaço para os talibãs.
Finalmente, a última pergunta que não quer se calar é se os Estados Unidos, que no pós 9/11 entenderam e calcularam mal a invasão do Afeganistão e as suas intermináveis consequências, agirão da mesma forma que fizeram nos casos do Vietnã e do Iraque: “tacaram fogo no paiol e depois fugiram”… Qual seria a solução, se é que pode sequer haver uma que não seja traumática?… Recorro, mais uma vez, a Rudyard Kipling: “Asia is not going to be civilized after the methods of the West. There is too much Asia and she is too old”.
To be continued…
Recomendo a leitura do artigo Global Terror and the Taliban’s Return, publicado pelo Project Syndicate em 6/4/2021.
Leia também O fim (?) da Guerra do Afeganistão II