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E la nave va… o BRICS

Merece reflexão atenta o artigo intitulado “O Brics Numa Nova Etapa”, do Embaixador Rubens Barbosa, que o Estadão publicou no dia 17/07, no qual ele analisa a 14ª cúpula do BRICS, realizada em 23/ 24 de junho, no formato virtual, sob a presidência de turno da China. O tema do encontro – “Promover uma Parceria de Alta Qualidade e Inaugurar uma Nova Era para o Desenvolvimento Global” – trata das próximas ações do grupo neste momento particularmente complexo em que um dos seus membros, a Rússia, promove uma guerra contra a Ucrânia, que tem, por sua vez, como pano de fundo, a ameaça que Moscou entende sofrer de parte do Ocidente contra o “status quo” da região que fez parte do “império” soviético.

Conforme assinalou o Embaixador, “o encontro buscou aumentar a parceria entre o grupo e atuar por uma nova era para o desenvolvimento global, com base em três pilares: governança global, economia e comércio e interação da sociedade civil”. O que está em jogo, em última instância, para mim, é a transferência da liderança geoeconômica do Ocidente para o novo paradigma nas relações internacionais em que o Oriente assume irreversível proeminência. Incluo neste último quadrante a Rússia, “aliciada” pelo isolamento que a guerra da Ucrânia a colocou perante o Ocidente central.

E qual seria o papel do BRICS neste cenário? Esta é a questão que o Embaixador Barbosa levanta quando afirma que “o peso crescente das economias emergentes e em desenvolvimento encontrou no Brics uma representação que tenderá a se tornar, numa visão de médio e de longo prazos, cada vez mais visível no cenário internacional”. Em que sentido?…Recapitulando, sabemos que a ideia original dos BRIC’s (na época sem o S da África do Sul) não foi formulada por uma liderança política, econômica ou instituição internacional, mas por um agente privado, o economista-chefe do Goldman Sachs, Jim O’Neil, em estudo de 2001, intitulado “Building Better Global Economic BRICs”. Eram países que para ele assumiriam a dianteira da geoeconomia neste século, em substituição às potências que têm dominado o cenário do pós-guerra.

Para O´Neil trata-se de um agrupamento de quatro países de mercado emergente com características específicas: duas das três maiores economias do mundo (China e Índia), uma das duas maiores potências nucleares (Rússia) e um dos maiores produtores agrícolas globais (Brasil), como assinala o Embaixador. Características assimétricas, mas complementares, no sentido amplo. A inclusão da África do Sul ocorreu quando o seu governo postulou a admissão, em 2010. Este processo teve início em agosto daquele ano, e o país foi admitido oficialmente como membro em 24 de dezembro. Foi então que a letra “S” acrescentou-se ao então B R I C.

Formatados quando os ministros das Relações Exteriores do Brasil, Rússia, Índia e China se reuniram às margens da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, em setembro de 2006, no princípio os encontros dos BRIC’s tiveram caráter informal. Entretanto, a partir da sua primeira reunião de cúpula, em Yecaterimburgo, na Rússia, em 2009, eles passaram a constituir um foro de concertação econômica entre governos com objetivos comuns e não mais uma associação informal como havia sido até então. O foco passou a ser a busca de meios concertados para “aprimorar a situação econômica global, reformar as instituições financeiras internacionais e definir formas de os cinco membros cooperarem entre si para criar pontes visando o envolvimento mais efetivo dos países em desenvolvimento nos assuntos globais”.

Desde então tem como “modus operandi” evitar a “contaminação” das suas ações conjuntas por fatores políticos que ameacem a sua estabilidade. De outra forma, como conciliar a interação entre governos de matrizes tão distintas como a República Popular da China, de Xi jinping; a Rússia, de Vladimir Putin; a Índia, de Narendra Modi; o Brasil, de Jair Bolonaro; e a África do Sul, de Cyril Ramaphosa? Não me refiro somente à diferença de sistemas de governo e graus de desenvolvimento das respectivas economias, mas também à diferença de personalidade dos governantes de turno. Nada, por exemplo, que se assemelhe à coesão dos membros do G-7, como a guerra da Ucrânia bem demonstra.

De todos os seus projetos, o que até agora apresentou resultados mais concretos é o “Novo Banco de Desenvolvimento”/ NBD (em inglês New Development Bank, NDB). Criado em 15 de julho de 2014, durante a VI cúpula, de Fortaleza, o principal objetivo do “Banco dos BRICS”, como é chamado, é financiar projetos de infraestrura e desenvolvimento em países pobres e emergentes (subvencionados sobretudo pelos chineses, maiores “stakehokders”, evidentemente).

Mas…

Recordemos que semanas antes da invasão da Ucrânia, em fevereiro passado, Vladimir Putin e Xi Jinping se reuniram em Pequim, e publicaram um manifesto conjunto que reza: “…hoje, o mundo está passando por mudanças importantes, e a humanidade está entrando em uma nova era de rápido desenvolvimento e profunda transformação. Assiste ao desenvolvimento de processos e fenômenos como multipolaridade, globalização econômica, advento da sociedade da informação, diversidade cultural, transformação da arquitetura de governança global e ordem mundial… Há crescente inter-relação e interdependência entre os Estados. Esta tendência surgiu para a redistribuição do poder no mundo, e a comunidade internacional está revelando demanda crescente por liderança que vise o desenvolvimento pacífico e gradual”…

Nesse contexto, cabe a pergunta: é possível isolar o “político” do “econômico” na atuação do BRICS e evitar que se “contaminem” mutuamente? Trocando em miúdos, é possível manter uma posição coesa do grupo na Guerra de Ucrânia? E, em assim não sendo, como conciliar as políticas delineadas por cada um deles sobre este tema tão candente? Os chineses já se manifestaram em favor da Rússia e contra a expansão da OTAN; a Índia pende em direção ao Ocidente. Mais ainda, no comunicado conjunto de Pequim, Xi e Putin afirmaram que “as partes compartilham o entendimento de que a democracia é um valor humano universal em vez de um privilégio de um número limitado de Estados, e que sua promoção e proteção é uma responsabilidade comum a toda a comunidade mundial… uma nação pode escolher as formas e métodos de implementação de democracia que melhor se adequem ao seu momento particular, com base em seu sistema social e político, sua história, tradições e características culturais únicas. Cabe tão somente ao povo do país decidir se seu Estado é democrático… os cidadãos de ambos os países estão certos da sua escolha e respeitam os sistemas democráticos e tradições dos outros Estados”…

Diante desta aliança de ex-inimigos, será que os demais membros do BRICS conseguirão impedir a interferência entre eles dos desdobramentos políticos e os econômicos num mundo crescentemente complexo e ambíguo, no qual a guerra da Ucrânia, por mais fundamental que seja agora, tornar-se-á mais um tema que a História absorverá, como tantas outras guerras?…

E qual será o papel do BRICS no planeta pós-westfaliano que se consolida à medida que a globalização avança? Perseguirá algum protagonismo, ou será mais uma entidade retórica que a História armazenará nas suas bibliotecas? A palavra-chave, a meu juízo, é vontade, e empenho, políticos, no sentido de focar o compromisso maior que une os cinco – e o restante do mundo emergente – na busca de um planeta menos heterogêneo, que rompa a hierarquia Ocidente / Oriente herdada do colonialismo. Em suma, assumir com clarividência o trajeto que se desvenda para o século XXI/XXII. Quem, como eu, vivenciou quatro hegemonias – da Ingleterra, até 1945, quando nasci; dos EUA / União Soviética até o esfacelamento da URSS, em 1991; isolada dos EUA até o início do século XXI; e agora disputada com a China – conhece a transitoriedade do poder internacional…

O “buraco” é, evidentemente, muito mais embaixo, e muito mais complexo que estas reflexões de um final de semana em recolhimento alimentam. Mas pareceu-me importante “matutar” sobre elas… Enquanto isto, “la nave va”…

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.