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O tal do poder (II): os Estados nacionais, a Paz de Westphalia e a globalização

Sala do Conselho de Segurança da ONU (Foto de Mark Garten)

Polemizando, ainda, a respeito da tragédia da Ucrânia…

Em meados do século XVII, os impérios europeus estavam envolvidos numa disputa religioso-territorial que durava já trinta anos, a qual a História registrou como “a Guerra dos Trinta Anos”(1618-1648), como recordamos. A chamada “Paz de Westphalia” foi contruída em dois tratados assinados em outubro de 1648, nas cidades de Osnabrück e Münster, na Alemanha, encerrando os violentos combates que vitimaram cerca de oito milhões de pessoas.

Estes tratados puseram fim à guerra que envolveu, de um lado, os Habsburgos, governantes da Áustria e da Espanha e seus aliados católicos e, de outro, as potências protestantes, a Suécia e certos principados aliados, juntamente com a França de Luís XIV, que, embora católica, era fortemente anti-Habsburgo. Por eles, os poderes dos Habsburgos foram devolvidos aos governantes das demais potências imperiais, que a partir de então puderam escolher suas próprias religiões oficiais: católicos e protestantes foram redefinidos como iguais perante a lei e o calvinismo recebeu reconhecimento como religião oficial. Em contraponto, a Santa Sé ficou muito descontente com o documento, que o Papa Inocente X chamou de “nulo, vazio, inválido, injusto, injusto, condenável, reprovado, insano, vazio de significado e efeito para sempre”.

Vários ajustes territoriais foram realizados nesse contexto. De mais importante, os documentos estabeleceram o precedente do alcance da paz pelo meio diplomático e um novo sistema de ordenamento político na Europa baseado no conceito da coexistência entre países autônomos. O chamado “princípio de Westphalia”, que reconhece a soberania dos Estados e o direito de decidirem seu próprio destino constitui hoje a base do direito internacional como o entendemos.

Estes conceitos de soberania do Estado, de mediação entre as nações, e da diplomacia, encontram, pois, sua origem no texto destes tratados firmados há mais de trezentos e cinquenta anos. Eles constituíram o vagido da diplomacia internacional moderna e formalizaram o princípio da tolerância religiosa a partir de uma perspectiva política. O sistema westphaliano permanece sendo o modelo para a política internacional em todo o mundo, e o conceito de soberania do Estado solidificado pela paz ainda é a base para os tratados e convenções internacionais modernos.

Segundo o Professor Steven Patton, no seu texto “The Peace of Westphalia and it Affects on International Relations, Diplomacy and Foreign Policy”, “…os conceitos de soberania dos Estados, o sistema de mediação entre nações e a diplomacia encontram suas origens no texto deste tratado escrito há mais de trezentos e cinquenta anos. Esta paz, que na verdade era composta por duas conferências de paz diferentes, foi a primeira tentativa de modernizar a diplomacia internacional, e solidificou o princípio da tolerância religiosa a partir de uma perspectiva política. Foi uma das primeiras tentativas de codificar um conjunto internacional de leis, e essencialmente forneceu o esteio para as comunidades internacionais, como a União Europeia e as Nações Unidas… O sistema westphaliano ainda continua sendo o modelo para a política internacional em todo o mundo, e o conceito de soberania dos Estados, solidificado pela paz, ainda é a base para os tratados e convenções internacionais modernos”.

Só que……

O planeta passou por profundas transformações ao longo do século XIX quando as potências europeias passaram a ocupar espaços pelos continentes afora, não somente explorando as riquezas que a conivência com as elites locais lhes proporcionavam, senão também impingindo conceitos civilizacionais alheios à natureza e à história dessas sociedades. As mais nefastas consequências desses achaques foram a fronteiras artificiais desenhadas pelos colonizadores, separando etnias, famílias, e sociedades, que até hoje buscam seus reais contornos. Esta é a herança trágica do colonialismo.

Veio acrescentar/substituir (?) esta etapa o processo de globalização do comércio e da economia levado a cabo pelas empresas transnacionais sobretudo a partir de meados do século XX: mão-de-obra numerosa, barata e cordata ampliaram as fronteiras dos impérios empresariais, acabando por modificar a própria estrutura da geoeconomia… e da geopolítica, por acréscimo. Cito sempre aos meus amigos que, nos meus 76 anos de vida, passei por quatro “hegemonias”: 1) a da Inglaterra, quando nasci, em 1945 – “ the sun never sets on the British Empire”, remember? – 2) a bipolaridade URSS/EUA-Ocidente, na década de 70; 3) a hegemonia unilateral americana quando a União Soviética se dissolveu, em 1991; e 4) um novo paradigma, ainda em construção, talvez uma hegemonia compartilhada EUA (+Ocidente?) e China, ou, para os mais radicais, China “tout court”…. Não nos esqueçamos de que a República Popular é a principal parceira comercial da maioria dos países do planeta e, segundo analistas, assumirá a liderança da economia mundial dentro de alguns anos…

É neste universo, para mim, que se situam os acontecimentos na Ucrânia. O meu raciocínio pode parecer “fora do contexto”, mas ele toma contornos mais nítidos, acredito, quando lemos o comunicado conjunto que Vladimir Putin e Xi Jinping firmaram recentemente em Pequim, quando o russo foi o convidado de honra às Olimpíadas de Inverno: …“ hoje, o mundo está passando por mudanças importantes, e a humanidade está entrando em uma nova era de rápido desenvolvimento e profunda transformação. Assiste ao desenvolvimento de processos e fenômenos como multipolaridade, globalização econômica, advento da sociedade da informação, diversidade cultural, transformação da arquitetura de governança global e ordem mundial… Há crescente inter-relação e interdependência entre os Estados. Esta tendência surgiu para a redistribuição do poder no mundo, e a comunidade internacional está revelando demanda crescente por liderança que vise o desenvolvimento pacífico e gradual….. as partes compartilham o entendimento de que a democracia é um valor humano universal em vez de um privilégio de um número limitado de Estados, e que sua promoção e proteção é uma responsabilidade comum a toda a comunidade mundial…” (sic)

Planeta westphaliano, ou Pangeia reconstituída?…

Neste cenário, onde se insere a Rússia, maior potência militar do planeta, porém “apenas” o 11ª PIB mundial, um degrau somente acima do nosso? Veleidade ideológica? Saudosismo de um império moribundo? Faz sentido a intenção da Rússia de enclausurar uma população historicamente irmã a uma fronteira anacrônica: Rússia + Crimeia + Donetsk + Luhansk X Ucrânia…? E a OTAN: seu espraiamento pela Europa também faz sentido quando sua vocação original – proteger o Ocidente dos comunistas da URSS – já não tem mais razão de ser no planeta pós-soviético?

Perguntas e dilemas que requerem profunda reflexão…

Leia também O tal do poder (I): e o Conselho de Segurança da ONU

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.

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