Polemizando, ainda, a respeito da tragédia da Ucrânia…
Em meados do século XVII, os impérios europeus estavam envolvidos numa disputa religioso-territorial que durava já trinta anos, a qual a História registrou como “a Guerra dos Trinta Anos”(1618-1648), como recordamos. A chamada “Paz de Westphalia” foi contruída em dois tratados assinados em outubro de 1648, nas cidades de Osnabrück e Münster, na Alemanha, encerrando os violentos combates que vitimaram cerca de oito milhões de pessoas.
Estes tratados puseram fim à guerra que envolveu, de um lado, os Habsburgos, governantes da Áustria e da Espanha e seus aliados católicos e, de outro, as potências protestantes, a Suécia e certos principados aliados, juntamente com a França de Luís XIV, que, embora católica, era fortemente anti-Habsburgo. Por eles, os poderes dos Habsburgos foram devolvidos aos governantes das demais potências imperiais, que a partir de então puderam escolher suas próprias religiões oficiais: católicos e protestantes foram redefinidos como iguais perante a lei e o calvinismo recebeu reconhecimento como religião oficial. Em contraponto, a Santa Sé ficou muito descontente com o documento, que o Papa Inocente X chamou de “nulo, vazio, inválido, injusto, injusto, condenável, reprovado, insano, vazio de significado e efeito para sempre”.
Vários ajustes territoriais foram realizados nesse contexto. De mais importante, os documentos estabeleceram o precedente do alcance da paz pelo meio diplomático e um novo sistema de ordenamento político na Europa baseado no conceito da coexistência entre países autônomos. O chamado “princípio de Westphalia”, que reconhece a soberania dos Estados e o direito de decidirem seu próprio destino constitui hoje a base do direito internacional como o entendemos.
Estes conceitos de soberania do Estado, de mediação entre as nações, e da diplomacia, encontram, pois, sua origem no texto destes tratados firmados há mais de trezentos e cinquenta anos. Eles constituíram o vagido da diplomacia internacional moderna e formalizaram o princípio da tolerância religiosa a partir de uma perspectiva política. O sistema westphaliano permanece sendo o modelo para a política internacional em todo o mundo, e o conceito de soberania do Estado solidificado pela paz ainda é a base para os tratados e convenções internacionais modernos.
Segundo o Professor Steven Patton, no seu texto “The Peace of Westphalia and it Affects on International Relations, Diplomacy and Foreign Policy”, “…os conceitos de soberania dos Estados, o sistema de mediação entre nações e a diplomacia encontram suas origens no texto deste tratado escrito há mais de trezentos e cinquenta anos. Esta paz, que na verdade era composta por duas conferências de paz diferentes, foi a primeira tentativa de modernizar a diplomacia internacional, e solidificou o princípio da tolerância religiosa a partir de uma perspectiva política. Foi uma das primeiras tentativas de codificar um conjunto internacional de leis, e essencialmente forneceu o esteio para as comunidades internacionais, como a União Europeia e as Nações Unidas… O sistema westphaliano ainda continua sendo o modelo para a política internacional em todo o mundo, e o conceito de soberania dos Estados, solidificado pela paz, ainda é a base para os tratados e convenções internacionais modernos”.
Só que……
O planeta passou por profundas transformações ao longo do século XIX quando as potências europeias passaram a ocupar espaços pelos continentes afora, não somente explorando as riquezas que a conivência com as elites locais lhes proporcionavam, senão também impingindo conceitos civilizacionais alheios à natureza e à história dessas sociedades. As mais nefastas consequências desses achaques foram a fronteiras artificiais desenhadas pelos colonizadores, separando etnias, famílias, e sociedades, que até hoje buscam seus reais contornos. Esta é a herança trágica do colonialismo.
Veio acrescentar/substituir (?) esta etapa o processo de globalização do comércio e da economia levado a cabo pelas empresas transnacionais sobretudo a partir de meados do século XX: mão-de-obra numerosa, barata e cordata ampliaram as fronteiras dos impérios empresariais, acabando por modificar a própria estrutura da geoeconomia… e da geopolítica, por acréscimo. Cito sempre aos meus amigos que, nos meus 76 anos de vida, passei por quatro “hegemonias”: 1) a da Inglaterra, quando nasci, em 1945 – “ the sun never sets on the British Empire”, remember? – 2) a bipolaridade URSS/EUA-Ocidente, na década de 70; 3) a hegemonia unilateral americana quando a União Soviética se dissolveu, em 1991; e 4) um novo paradigma, ainda em construção, talvez uma hegemonia compartilhada EUA (+Ocidente?) e China, ou, para os mais radicais, China “tout court”…. Não nos esqueçamos de que a República Popular é a principal parceira comercial da maioria dos países do planeta e, segundo analistas, assumirá a liderança da economia mundial dentro de alguns anos…
É neste universo, para mim, que se situam os acontecimentos na Ucrânia. O meu raciocínio pode parecer “fora do contexto”, mas ele toma contornos mais nítidos, acredito, quando lemos o comunicado conjunto que Vladimir Putin e Xi Jinping firmaram recentemente em Pequim, quando o russo foi o convidado de honra às Olimpíadas de Inverno: …“ hoje, o mundo está passando por mudanças importantes, e a humanidade está entrando em uma nova era de rápido desenvolvimento e profunda transformação. Assiste ao desenvolvimento de processos e fenômenos como multipolaridade, globalização econômica, advento da sociedade da informação, diversidade cultural, transformação da arquitetura de governança global e ordem mundial… Há crescente inter-relação e interdependência entre os Estados. Esta tendência surgiu para a redistribuição do poder no mundo, e a comunidade internacional está revelando demanda crescente por liderança que vise o desenvolvimento pacífico e gradual….. as partes compartilham o entendimento de que a democracia é um valor humano universal em vez de um privilégio de um número limitado de Estados, e que sua promoção e proteção é uma responsabilidade comum a toda a comunidade mundial…” (sic)
Planeta westphaliano, ou Pangeia reconstituída?…
Neste cenário, onde se insere a Rússia, maior potência militar do planeta, porém “apenas” o 11ª PIB mundial, um degrau somente acima do nosso? Veleidade ideológica? Saudosismo de um império moribundo? Faz sentido a intenção da Rússia de enclausurar uma população historicamente irmã a uma fronteira anacrônica: Rússia + Crimeia + Donetsk + Luhansk X Ucrânia…? E a OTAN: seu espraiamento pela Europa também faz sentido quando sua vocação original – proteger o Ocidente dos comunistas da URSS – já não tem mais razão de ser no planeta pós-soviético?
Perguntas e dilemas que requerem profunda reflexão…
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