ISSN 2674-8053

O tal do poder (I): Conselho de Segurança da ONU

As tropas russas entraram em Kiev, no dia 25/02. Sirenes de ataques aéreos foram ouvidas por toda a cidade e hoje acompanhamos consternados as notícias e as imagens que os meios de comunicação de todo o mundo divulgaram sobre a tragédia que se abateu sobre a Ucrânia.

O Conselho de Segurança discutiu na véspera uma resolução condenatória, ainda que ciente de que não poderia implementá-la devido à oposição da Rússia que, como membro permanente do Conselho tem o direito de veto. O capítulo da Carta da ONU considerado, inicialmente, foi o VII – artigos 39 a 51 -, que elenca medidas escalonadas a serem adotadas no caso de ameaça à paz, quebra da paz e atos de agressão. Na redação da proposta original, o CSNU teria “lamentado em termos severos a agressão da Federação Russa como uma violação do artigo 2º, parágrafo 4º da Carta das Nações Unidas”, a qual impõe “a obrigação de abster-se da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”. O projeto também previa que o Conselho recomendasse que “a Federação Russa cesse imediatamente o uso da força contra a Ucrânia e retire todas as suas forças militares imediatamente, completamente e incondicionalmente do território daquele país”. O texto da resolução foi submetido ao plenário pela delegação da Albânia.

Como estava redigido, ele teria grande dificuldade de ser aprovado pelos chineses, que também têm o direito de veto no CSNU. Como recordamos, semanas poucas atrás Xi Jinping e Vladimir Putin haviam firmado durante a visita deste último a Pequim como hóspede de honra de Xi às Olimpíadas de Inverno, um comunicado conjunto no qual afirmavam que “as partes se opõem a uma nova expansão da OTAN e instam a Aliança a abandonar suas abordagens ideológicas de Guerra Fria, respeite a soberania, a segurança e os interesses de outros países, a diversidade de suas origens civilizacionais, culturais e históricas, e mantenha uma atitude justa e objetiva em relação ao desenvolvimento pacífico de outros Estados. As partes se posicionam contra a formação de estruturas fechadas de bloco e campos opostos na região Ásia-Pacífico, e permanecem altamente vigilantes com relação ao impacto negativo da estratégia Indo-Pacífico dos Estados Unidos” (sic).

A delegação da China acabou por se abster de usar o seu direito de veto, o que surpreendeu muitos analistas. Na justificativa deste “não-voto”, o representante permanente da China na ONU, Zhang Jun, afirmou que “a segurança de um país não pode vir ao custo de minar a segurança de outras nações…a soberania e integridade territorial de todos os Estados e os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas devem ser respeitados…”. A decisão da China de não se aliar à Rússia, contrariamente ao esperado diante da “allegiance” sedimentada em Pequim, foi entendida como “uma conquista diplomática” pelos analistas. O “pano de fundo” foi obviamente a questão dos territórios chineses que são contestados pela comunidade internacional, leia-se Taiwan, Hong Kong, Tibete, Xinjiang e Mar do Sul da China: abrir o flanco e discutir o “direito de interferir nos assuntos internos dos outros países” seria criar precedente perigoso para Pequim. Xi e Putin que se entendam depois…

Causou igualmente surpresa a abstenção da Índia. Explicando a posição do seu país, o seu representante permanente na ONU, T. S. Tirumurti disse: “A Índia está profundamente perturbada com a recente reviravolta dos desenvolvimentos na Ucrânia”. “Pedimos que todos os esforços sejam feitos para a cessação imediata da violência e das hostilidades”. Acrescentou ele que este pleito também fora transmitido pelo primeiro-ministro Narendra Modi ao presidente Putin durante um telefonema no dia anterior. “Nenhuma solução pode ser alcançada ao custo das vidas humanas”, disse Tirumurti. “A ordem global contemporânea foi construída sobre a Carta das Nações Unidas, o direito internacional e o respeito pela soberania e integridade territorial dos Estados”. Continuou afirmando que “todos os Estados-membros precisam honrar esses princípios para encontrar um caminho construtivo.” Também no caso da Índia, subjaz ao seu voto a disputa entre a Índia e o Paquistão na região da Caxemira, litígio no qual Delhi resiste à intromissão da ONU. Lembremo-nos de que em 21/04/48, após a Partição do Subcontinente o Conselho de Segurança adotou a Resolução 47 que instou os dois vizinhos a restaurar a paz e a preparar a realização de um plebiscito para decidir o destino da região; o que a Índia então não aceitou, e não aceita agora, por considerar a questão como “um assunto interno”, e no qual o Paquistão insiste, porque acredita que sairia ganhador, devido ao apoio maciço da população local.

Enquanto isto, a situação na Ucrânia se deteriora a cada instante, e as imagens da resistência heroica dos ucranianos e a saga dos refugiados assolam a nossa consciência…

Real Politik X Vidas Humanas?…

To be continued…(infelizmente)…”

Leia também O tal do poder (II): os Estados nacionais, a Paz de Westphalia e a globalização

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.

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