
Movimentos sociais, protestos populares e lideranças juvenis em países do Sul global têm se tornado protagonistas de transformações políticas e sociais significativas, desafiando o monopólio das potências tradicionais na definição da agenda internacional. Em 2025, manifestações na África, no Oriente Médio, na Ásia e na América Latina mostram que a política internacional já não se limita aos governos e às grandes potências: ela é cada vez mais influenciada por atores locais que reivindicam participação, justiça social e soberania.
Embora historicamente as decisões globais tenham sido concentradas nas mãos de países do Norte — especialmente após a Segunda Guerra Mundial — os últimos anos mostraram o surgimento de uma dinâmica distinta. A juventude urbana, os movimentos feministas, os coletivos antirracistas, as redes de ativistas climáticos e os protestos populares passaram a mobilizar milhões de pessoas em países considerados periféricos, pressionando instituições nacionais e também internacionais por mudanças concretas.
Um exemplo recente foi o levante popular no Quênia, em julho de 2025, onde milhares de jovens tomaram as ruas contra o aumento do custo de vida, a política fiscal imposta por acordos com o FMI e a crescente concentração de poder político. Embora o governo tenha tentado reprimir os protestos, a mobilização revelou uma juventude articulada e consciente do impacto de decisões tomadas em Washington ou Bruxelas sobre a vida cotidiana em Nairóbi. A pauta não era apenas nacional — era também global: questionava a legitimidade dos condicionantes econômicos impostos por instituições multilaterais.
No norte da África, os protestos no Egito e na Tunísia mostram uma nova onda de ativismo social e político, distinta da Primavera Árabe de 2011, mas igualmente inquieta com o autoritarismo, a desigualdade e a desconexão entre governos e população. Na Nigéria, jovens organizam protestos digitais contra a violência policial e o desemprego, fazendo da internet uma ferramenta de articulação e denúncia. Esses movimentos dialogam diretamente com ativistas em outras partes do mundo, criando uma rede de solidariedade global que escapa aos canais diplomáticos tradicionais.
No sul da Ásia, estudantes e agricultores se levantaram contra reformas que ameaçam direitos básicos na Índia e em Bangladesh. No Paquistão, mulheres jovens desafiam tanto o conservadorismo religioso quanto as alianças militares do país, denunciando como a geopolítica internacional silencia abusos em nome da estabilidade estratégica. Essas vozes emergentes — muitas vezes desprezadas pelos governos centrais — passam a pressionar por participação em espaços de decisão nacionais e transnacionais.
Na América Latina, o Chile, o Peru e a Colômbia também enfrentaram grandes ondas de protesto nos últimos anos. Em comum, os manifestantes criticam tanto as elites nacionais quanto a arquitetura internacional que perpetua desigualdades. Há uma clara rejeição à ideia de que o “desenvolvimento” pode ser imposto de cima para baixo, sem consulta às populações afetadas. A defesa de direitos territoriais, o questionamento de tratados comerciais e o apelo por soberania digital mostram uma consciência crítica cada vez mais articulada.
Essas mobilizações revelam um novo padrão: o Sul global não é mais apenas “objeto” das relações internacionais, mas um ator que tenta, com múltiplas vozes, redefinir os termos da conversa global. E embora esses atores ainda encontrem resistências — tanto internas quanto externas — sua presença é cada vez mais impossível de ignorar.
Organizações internacionais, por sua vez, demonstram dificuldade em lidar com essa mudança. A estrutura da ONU, por exemplo, segue dependente de acordos entre governos — mesmo quando esses governos não representam de fato os interesses de suas populações. O G20, o FMI e o Banco Mundial ainda são espaços onde a sociedade civil tem voz limitada. E, diante disso, muitos movimentos optam por criar seus próprios fóruns, redes transnacionais e plataformas de mobilização, ampliando sua influência por meios não convencionais.
A emergência dessas novas vozes coloca um desafio e uma oportunidade. O desafio está em compreender que a política internacional não se limita mais à geopolítica de Estados, mas envolve redes, movimentos e populações conectadas por causas comuns. A oportunidade, por outro lado, está em reimaginar a governança global de forma mais democrática, inclusiva e sensível às realidades locais.
O mundo multipolar que se desenha exige não apenas equilíbrio entre grandes potências, mas também escuta ativa aos povos que historicamente foram excluídos das decisões. Se a ordem internacional não reconhecer e incorporar essas novas vozes, corre o risco de continuar sendo contestada por baixo — por milhões que já não aceitam uma globalização sem justiça, sem representatividade e sem transformação real.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
