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A geopolítica da fome e os interesses por trás da agenda verde

A segurança alimentar, um dos temas mais urgentes da agenda internacional, está cada vez mais condicionada a disputas políticas, interesses econômicos e estratégias disfarçadas de boas intenções. A busca por um sistema alimentar mais sustentável — promovida por fóruns como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e pelas metas da chamada agenda verde — tem sido usada, em muitos casos, como justificativa para práticas protecionistas e restritivas que dificultam o acesso de países do Sul Global aos mercados e tecnologias necessários para garantir sua soberania alimentar.

O paradoxo é evidente: ao mesmo tempo em que organismos internacionais pedem soluções globais e integradas para erradicar a fome, muitas das iniciativas de sustentabilidade acabam impondo barreiras aos países mais vulneráveis, seja por meio de exigências ambientais excessivamente rígidas, seja por normas comerciais que favorecem grandes produtores do Norte global.

As novas faces do protecionismo

Nos últimos anos, países da União Europeia adotaram uma série de medidas ambientais que afetam diretamente as exportações de produtos agrícolas vindos da América Latina, da África e da Ásia. Uma das mais polêmicas é o Regulamento Europeu contra o Desmatamento, que exige garantias ambientais rigorosas para a entrada de produtos como soja, café e carne bovina.

Embora a justificativa seja ambiental, o efeito prático é a criação de barreiras ao comércio que impactam fortemente pequenos e médios produtores do Sul Global. O Brasil, por exemplo, denunciou que tais medidas tendem a excluir cadeias produtivas inteiras, mesmo quando não estão associadas diretamente ao desmatamento, devido à complexidade de rastreamento exigida. Já países africanos como Gana e Costa do Marfim alertam que a imposição de padrões ambientais e sociais europeus ao cacau pode levar ao colapso de sua principal fonte de renda externa.

Enquanto isso, países europeus continuam subsidiando intensamente seus próprios agricultores. Estima-se que, anualmente, a União Europeia injete mais de 50 bilhões de euros em sua Política Agrícola Comum (PAC), o que garante vantagem competitiva aos seus produtores — mesmo quando operam com práticas menos sustentáveis que aquelas exigidas de países exportadores. Esse duplo padrão reforça desigualdades e compromete os próprios objetivos dos ODS, como o de “erradicar a fome até 2030”.

Alimentação como política de poder

A segurança alimentar também tem sido usada como ferramenta de pressão geopolítica. A guerra na Ucrânia escancarou esse aspecto. A Rússia, maior exportadora mundial de trigo, passou a condicionar o fornecimento do grão a países africanos e asiáticos em troca de apoio político ou neutralidade diplomática. Por outro lado, os Estados Unidos e a União Europeia tentaram organizar corredores de exportação para o grão ucraniano, não apenas como auxílio humanitário, mas como estratégia para manter influência sobre países dependentes dessas importações.

A China, por sua vez, investe massivamente na compra de terras agrícolas em países africanos e latino-americanos, bem como no desenvolvimento de cadeias alimentares controladas diretamente por empresas estatais chinesas. A retórica oficial é de cooperação Sul-Sul, mas críticos apontam que essa prática pode gerar dependência estrutural e exclusão de mercados locais, especialmente quando a produção é voltada para exportação e não para abastecimento interno.

Já a Índia, que se tornou um dos maiores produtores e exportadores de arroz do mundo, impôs em 2023 uma série de restrições à exportação de arroz branco para conter a inflação interna. A decisão teve impacto direto em países do sul da Ásia e da África Oriental, que dependem dessas importações. A medida, embora compreensível do ponto de vista doméstico, expôs a fragilidade de um sistema alimentar excessivamente concentrado em poucos grandes produtores.

A fragmentação da ação global

Enquanto a fome volta a crescer — com mais de 735 milhões de pessoas subnutridas em 2023, segundo a FAO —, o sistema multilateral fracassa em oferecer uma resposta coordenada. Parte do problema reside na multiplicidade de agendas sobrepostas: a agenda climática, a agenda da biodiversidade, os direitos dos povos originários, o combate ao desmatamento e o comércio internacional têm interseções legítimas com a produção de alimentos, mas frequentemente se chocam entre si.

No caso dos ODS, o objetivo número 2 — Fome Zero — tem sofrido retrocessos consecutivos desde 2015. Ao mesmo tempo, os compromissos climáticos da COP tentam avançar com metas de redução de emissão de gases agrícolas, especialmente do metano. O problema é que essas metas muitas vezes não consideram a realidade dos sistemas produtivos do Sul Global, onde práticas tradicionais e formas de agricultura familiar são vistas sob a lente da ineficiência, quando, na verdade, são essenciais para o abastecimento local e a preservação de biodiversidade.

Exemplo disso é a tentativa de alguns países de restringir a produção de carne bovina e leiteira por questões ambientais, ignorando o papel socioeconômico desses setores em países como o Brasil, a Argentina ou a Etiópia. Nesses locais, a pecuária não apenas alimenta milhões, mas também garante empregos e movimenta a economia rural. Substituir essas cadeias por modelos industriais ou importados pode agravar ainda mais a insegurança alimentar.

Um novo pacto global pela alimentação

A única forma de enfrentar o desafio da fome de forma eficaz é reconhecer que a segurança alimentar não pode ser subordinada a agendas específicas ou interesses nacionais. É preciso um novo pacto global, onde as decisões levem em conta as realidades regionais, os saberes locais e as necessidades concretas das populações.

Isso significa rever o papel das organizações multilaterais, que muitas vezes reproduzem a lógica do Norte Global. Significa também incluir mais vozes do Sul na formulação de normas internacionais, garantindo que a sustentabilidade ambiental caminhe junto com a justiça social e o desenvolvimento econômico.

A alimentação deve ser entendida como um bem comum da humanidade — e não como moeda de troca nas disputas geopolíticas. Somente assim será possível construir um sistema alimentar realmente inclusivo, justo e sustentável.

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