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Alternativas que disputam a ordem internacional

A tentativa de criar uma ordem internacional alternativa deixou de ser uma ideia difusa e ganhou corpo em arranjos concretos que se multiplicaram nas últimas duas décadas. O fio condutor é claro: reduzir a dependência de Washington e Bruxelas, diversificar centros de decisão e criar infraestrutura financeira, energética e logística que permita maior autonomia ao Sul Global. A Organização para Cooperação de Xangai, criada em 2001, é o emblema mais visível desse movimento porque combina segurança, política e economia numa mesma plataforma. Mas ela não está só. Em paralelo surgiram ou se fortaleceram blocos econômicos, bancos multilaterais fora do eixo tradicional, iniciativas de integração comercial asiática, redes políticas sul-sul e cartéis energéticos com capacidade de influenciar preços globais. O resultado é um tabuleiro mais denso, com sobreposições, parcerias pragmáticas e também fricções entre membros que, apesar de divergirem em temas sensíveis, convergem na ambição de multipolaridade.

O impulso por alternativas nasce de causas acumuladas: crises financeiras recorrentes que realçam assimetrias de governança, uso de sanções econômicas como instrumento de política externa, gargalos logísticos expostos pela pandemia, competição tecnológica entre Estados Unidos e China, e a percepção, em diversas capitais, de que a arquitetura construída no pós-1945 serve mal a interesses hoje mais distribuídos. A resposta tem sido montar, tijolo a tijolo, uma infraestrutura institucional paralela. Na Ásia, isso assumiu forma de pactos de segurança e comércio; na África, de agendas continentais de integração; na América Latina, de fóruns políticos que prescindem da tutela hemisférica. No Oriente Médio e entre exportadores de energia, a coordenação de produção transformou-se em alavanca geopolítica e orçamentária.

A OCX, fundada em 2001, começou como mecanismo de confiança mútua entre China, Rússia e repúblicas da Ásia Central, com exercícios conjuntos e uma secretaria especializada em combater terrorismo, separatismo e extremismo. A eficiência maior da OCX está em oferecer previsibilidade de fronteiras e canais de diálogo entre países que, de outra forma, tratariam de suas agendas em foros ocidentais ou bilateralmente, sob a sombra de potências externas. Em economia, o bloco confere visibilidade a projetos energéticos e corredores terrestres que conectam Eurásia e Oceano Índico, e dá lastro político a liquidações comerciais em moedas locais. A limitação evidente é a heterogeneidade interna: disputas entre membros, ritmos econômicos distintos e desconfianças históricas (como as rivalidades Índia-Paquistão ou receios centro-asiáticos perante vizinhos maiores) frequentemente diluem compromissos. A OCX avança por consenso, e o consenso, aqui, é um freio deliberado.

O BRICS, formalizado como cúpula em 2009, operou desde o início como projeto de poder narrativo: provar que um conjunto de grandes economias emergentes pode pautar reformas no FMI e no Banco Mundial, pressionar por maior representatividade e criar instrumentos próprios. Seu feito institucional mais tangível é o Novo Banco de Desenvolvimento, concebido em 2014 e operacional desde 2015, com carteira de infraestrutura focada em estradas, saneamento, energia e digitalização. A eficiência do BRICS reside em três pontos: capacidade de agenda (a cada cúpula, um tema ganha tração global), criação de alternativas financeiras (NBD e linhas de liquidez entre bancos centrais) e a abertura para comércio em moedas locais, o que reduz custos de transação e exposição a choques cambiais. As limitações são conhecidas: interesses comerciais concorrentes entre membros, divergências estratégicas em segurança e a dificuldade de transformar comunicados em políticas vinculantes. À medida que o grupo ampliou-se, a governança ficou mais complexa e a velocidade de decisão, mais lenta.

Se, no BRICS, a finança alternativa é um instrumento, na Iniciativa Cinturão e Rota, lançada em 2013, a infraestrutura é a própria estratégia. Portos, ferrovias, cabos submarinos, zonas industriais e energia formam um mapa de conectividade que encurta rotas e reduz custos de transporte para dezenas de países da Ásia, África, Europa e América Latina. A eficiência da iniciativa reside na escala de execução e na capacidade de combinar financiamento de longo prazo com exportação de engenharia e padrões técnicos. Os impactos práticos aparecem em corredores logísticos que desviam gargalos marítimos, em eletrificação e em malhas digitais. As limitações surgem quando a qualidade dos estudos de viabilidade é fraca, quando a dívida pública do parceiro se deteriora ou quando mudanças políticas locais revisitam contratos. Em alguns casos, prazos de entrega e padrões ambientais tornaram-se pontos de atrito, levando Pequim e parceiros a redesenhar o programa com ênfase em projetos “menores e melhores”.

A União Econômica da Eurásia, lançada em 2015, buscou replicar na vizinhança russa alguns elementos da integração europeia: livre circulação de bens, políticas industriais coordenadas e, em certos setores, regulação harmonizada. Sua eficiência maior aparece em cadeias regionais de valor (fertilizantes, metais, grãos, energia) e na redução de barreiras não tarifárias entre membros. O limite vem da assimetria de tamanho entre economias, que alimenta receios de dependência em relação a Moscou, e do fato de a união aduaneira conviver com regimes de sanções e contra-sanções que exigem soluções caso a caso para pagamentos, logística e tecnologia.

O Movimento dos Países Não Alinhados, criado em 1961, e o G77, de 1964, são as raízes políticas do questionamento ao eixo único. Ambos nasceram com a promessa de autonomia decisória e desenvolvimento. Sua eficiência, hoje, está em construir posições comuns na ONU sobre comércio, clima e governança digital, mantendo vivo um léxico de soberania que dá sustentação a iniciativas mais recentes. A limitação central é a baixa coercitividade: são foros de concertação, não organizações executivas, e dependem da energia política do momento para gerar resultados concretos.

Na América Latina, a ALBA, fundada em 2004, intentou uma integração contra-hegemônica baseada em compensações solidárias, notadamente no ciclo do petróleo caro. A eficiência do arranjo foi visível quando o fornecimento energético subsidiado viabilizou cooperação em saúde, educação e infraestruturas leves entre países caribenhos e andinos. O limite apareceu com o esgotamento fiscal e a volatilidade política: sem âncora financeira robusta e com economias pouco diversificadas, a capacidade de sustentação da rede diminuiu. No plano regional mais amplo, a CELAC, criada em 2010, ofereceu um foro sem Estados Unidos nem Canadá para concertação política latino-americana. Sua eficiência é simbólica e diplomática — reaproxima vizinhos, organiza cúpulas com parceiros extra-regionais e evita o engessamento da OEA —, mas sua limitação é estrutural: sem orçamento executivo e com divergências domésticas profundas, a execução é residual.

A União Africana, instituída em 2002, tomou forma executiva em agendas como a silenciamento das armas, resposta a crises e, sobretudo, a integração econômica. O passo decisivo foi o Acordo de Livre-Comércio Continental Africano, firmado em 2018, que vem reduzindo tarifas gradualmente e promovendo regras de origem comuns. A eficiência africana está na construção de um mercado em que empresas de Gana possam alcançar consumidores no Quênia sem a selva de barreiras que historicamente encareceu o comércio intra-continental. A limitação maior são as infraestruturas deficientes e os custos logísticos altos: sem ferrovias, energia estável e portos eficientes, a ambição tarifária perde efeito. Ainda assim, o continente avança com zonas industriais e corredores Norte-Sul e Leste-Oeste, atraindo financiamento asiático e do Golfo.

No campo financeiro, duas peças ajudam a compreender a arquitetura paralela: o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, criado em 2015 e operacional em 2016, e os sistemas de pagamentos alternativos. O primeiro nasceu para financiar obras transfronteiriças com governança mais enxuta do que a das instituições de Bretton Woods; a eficiência é a rapidez de aprovação e a especialização em infraestrutura. A limitação é duplamente política: o banco precisa provar padrão ambiental e social robusto e navegar percepções de que seria extensão de poder de um único acionista, algo mitigado pela composição ampla de seus membros. Quanto aos pagamentos, o CIPS chinês e o SPFS russo, ambos lançados na metade da década passada, oferecem roteamento fora da rede tradicional. A eficiência cresce quando países cruzam plataformas e usam moedas locais para comércio de commodities; a limitação é técnica e de confiança: efeitos de rede ainda favorecem o dólar e o sistema legado, e muitos bancos preferem não arriscar violações inadvertidas de sanções.

No comércio, a Parceria Econômica Regional Abrangente, assinada em 2020 e em vigor inicial desde 2022, é a maior zona de livre comércio do mundo em população e participação no PIB, conectando ASEAN, China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia. A eficiência está na simplificação de regras de origem e na criação de uma “Ásia sem costuras” para manufaturas e serviços, o que consolida cadeias regionais de valor e reduz custos para pequenas e médias empresas. A limitação é o alcance: o acordo é menos profundo do que pactos de “nova geração” em temas como compras governamentais e propriedade intelectual, e não tem ambição regulatória equivalente à europeia; ainda assim, fortalece a centralidade asiática em um mundo de desacoplamentos parciais.

Na segurança, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, formalizada em 2002 a partir de acordos da década de 1990, funciona como guarda-chuva defensivo para parte do espaço pós-soviético. Sua eficiência mede-se em exercícios, intercâmbio de inteligência e, em raros momentos, apoio a estabilizações rápidas. As limitações aparecem quando crises internas demandam legitimidade local ou quando interesses de membros divergem; a organização é intergovernamental e depende, portanto, da vontade política conjuntural de seus integrantes.

No campo energético, a OPEP, de 1960, e sua formatação ampliada, a OPEP+, de 2016, oferecem talvez o exemplo mais direto de capacidade de torcer a ordem econômica mundial sem recorrer a instituições financeiras. Ao coordenar cortes e aumentos de produção, exportadores do Golfo, África e América Latina, em parceria com a Rússia e outros produtores, influenciam preços, receitas fiscais e expectativas inflacionárias globais. A eficiência é inquestionável quando há coesão para administrar choques. As limitações emergem de duas frentes: divergências orçamentárias entre produtores (uns precisam de preço mais alto para fechar as contas do ano, outros defendem volumes maiores) e a transição energética, que pressiona planejamento de longo prazo e investimentos em adicionalidade.

A Ásia também oferece um exemplo híbrido de foro político-econômico duradouro com vocação autonômica: a ASEAN, de 1967, cuja eficiência sempre esteve na diplomacia de porta aberta e no “método ASEAN” — consensual, incremental, avesso a imposições. Esse estilo permitiu abrigar rivais na mesma mesa e, mais recentemente, operar como pivô da RCEP. A limitação é o custo da unanimidade: respostas lentas a crises e pouca capacidade de enforcement em temas delicados, o que por vezes frustra parceiros externos e empresas.

O mosaico latino-americano completa o quadro com ferramentas menos vistosas, porém úteis. O Mercosul, de 1991, mostrou eficiência notável na eliminação tarifária intrazona e na construção de cadeias automotivas e agroindustriais, mas padece de ciclos de desalinhamento político que travam acordos externos. Quando dialoga com a OCX, BRICS ou RCEP, o Cone Sul descobre que a integração doméstica é o pré-requisito para projetar autonomia.

O balanço geral dessas experiências indica que a construção de uma ordem alternativa não é obra de um único tratado, e sim de uma ecologia de instituições que se reforçam. Onde faltam bancos, surgem bancos; onde a logística emperra, surgem corredores; onde a diplomacia ocidental fecha portas, aparecem foros paralelos. A eficiência costuma vir da especialização — bancos de infraestrutura financiam, cartéis equilibram preços, pactos comerciais simplificam regras, alianças de segurança reduzem riscos de fronteira — e das sinergias entre elas, como quando uma obra financiada por banco asiático viabiliza exportações cobertas por acordo comercial e liquidadas por plataforma de pagamentos alternativa. As limitações também se repetem: heterogeneidade de interesses, consensos lentos, volatilidade política doméstica, preocupações ambientais e sociais, e, acima de tudo, o poder da inércia — o sistema legado ainda oferece liquidez, escala e previsibilidade.

Mesmo com essas travas, a direção de marcha está dada. OCX (2001), BRICS enquanto cúpula (2009) e seu banco (2014), Cinturão e Rota (2013), União Econômica da Eurásia (2015), Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (2015/2016), RCEP (2020/2022), Movimento dos Não Alinhados (1961), G77 (1964), ALBA (2004), União Africana e a moldura do AfCFTA (2002 e 2018), CELAC (2010), OTSC (2002), OPEP e OPEP+ (1960 e 2016) compõem, com funções distintas, um mesmo enredo: descentralizar a tomada de decisão global, ampliar as margens de escolha do Sul Global e criar redundâncias estratégicas que reduzam vulnerabilidades. Em alguns lugares, a mudança já se materializa em novas rotas de navios, trilhos e cabos; noutros, em planilhas de ministérios da fazenda com contratos em moedas locais; noutros, em agendas diplomáticas que passam a ter múltiplas capitais de referência. A ordem internacional resultante não é o espelho invertido da anterior. É mais barulhenta, menos previsível e, justamente por isso, mais representativa do mundo que existe fora do Atlântico Norte.

Resumo das iniciativas

BRICS

Criado em 2009, o grupo reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, ao qual se somaram, em 2024, novos membros como Irã, Egito, Etiópia e Arábia Saudita. A proposta central é criar uma voz coletiva de países emergentes no cenário internacional, defendendo reformas em instituições financeiras como o FMI e o Banco Mundial, além de promover alternativas, como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), sediado em Xangai. O BRICS é um dos exemplos mais claros de busca por um contrapeso às estruturas ocidentais.

União Econômica da Eurásia (UEE)

Fundada em 2015 por iniciativa da Rússia, a União Econômica da Eurásia inclui também Belarus, Cazaquistão, Armênia e Quirguistão. Seu objetivo é criar um mercado comum inspirado na União Europeia, mas sob a liderança de Moscou. Apesar de menos integrada, a UEE busca reduzir a influência da União Europeia e dos Estados Unidos sobre seus membros, oferecendo mecanismos de comércio e cooperação sob lógica regional.

Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative – BRI)

Embora não seja uma organização formal, a BRI, lançada pela China em 2013, funciona como um megaprojeto de integração global baseado em infraestrutura, logística e investimentos. Abrange Ásia, África, Europa e América Latina. Na prática, constrói corredores de comércio que escapam ao controle marítimo norte-americano e fortalecem uma rede de dependências econômicas centrada em Pequim.

Movimento dos Países Não Alinhados (MNA)

Criado durante a Guerra Fria, o movimento reunia países que não queriam se alinhar nem aos Estados Unidos nem à União Soviética. Embora tenha perdido força após 1991, o MNA mantém cerca de 120 membros e ainda é usado como fórum político para questionar a ordem internacional, sobretudo em pautas de soberania, desenvolvimento e reforma de organismos multilaterais.

G77 + China

Formado em 1964, o grupo reúne atualmente mais de 130 países do Sul Global. Originalmente pensado para coordenar posições no âmbito da ONU, o G77 ganhou novo impulso ao adotar a cooperação Sul-Sul como bandeira. Com a presença da China, passou a ter mais peso econômico e busca reequilibrar negociações internacionais em comércio, clima e desenvolvimento.

Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA)

Criada em 2004 por Venezuela e Cuba, a ALBA nasceu como reação direta à proposta da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), patrocinada pelos EUA. Com base em solidariedade política e cooperação energética, especialmente via petróleo venezuelano, apresentou-se como alternativa de integração anti-hegemônica no continente. Ainda que enfraquecida, simboliza a busca por arranjos distintos da lógica de Washington.

União Africana (UA)

A organização continental africana, criada em 2002, nasceu para substituir a antiga Organização da Unidade Africana (OUA). Embora não tenha a mesma visibilidade da OCX ou do BRICS, a UA busca afirmar maior protagonismo africano em questões globais. Suas propostas de maior integração econômica e política visam reduzir a dependência de modelos de governança impostos externamente.

Organização dos Estados Exportadores de Petróleo (OPEP+)

Composta por países do Oriente Médio, África e América Latina, além da Rússia, a OPEP+ atua como cartel energético. Ao coordenar produção e preços de petróleo, desafia diretamente o controle dos mercados ocidentais. Em várias ocasiões, suas decisões tensionaram a economia global e mostraram que o Sul Global também pode influenciar de forma decisiva o sistema internacional.

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