
A proposta do ex-presidente Donald Trump de “comprar a Groenlândia” em 2019, que à época foi tratada com escárnio pela imprensa e por líderes europeus, revelou, na verdade, um sintoma claro de uma mudança geopolítica relevante: o Ártico, por décadas ignorado por seu isolamento e condições extremas, tornou-se um dos mais cobiçados tabuleiros estratégicos do planeta. As razões são claras — rotas comerciais emergentes, recursos minerais críticos e reservas energéticas bilionárias estão no centro de uma disputa silenciosa entre potências como Estados Unidos, Rússia, China e países europeus.
A Passagem do Nordeste, ou Rota Marítima do Norte, é um dos eixos centrais dessa corrida. Com o avanço das mudanças climáticas e o progressivo derretimento do gelo marinho, a rota que contorna o norte da Rússia tornou-se operacional por mais meses ao longo do ano. Ela reduz em até 40% a distância entre os portos da Ásia e da Europa em comparação com o trajeto via Canal de Suez, o que tem levado empresas de logística e governos a reavaliar suas estratégias de transporte marítimo.
A Rússia tem investido pesadamente nessa rota. A estatal Rosatom é responsável pela gestão da infraestrutura logística da Rota do Norte, e o país opera a maior frota de quebra-gelos nucleares do mundo, necessários para manter a via navegável aberta durante o ano. O porto de Murmansk foi modernizado, e novas instalações estão sendo erguidas ao longo da Sibéria para facilitar o fluxo comercial e a exploração de petróleo e gás no Ártico. O projeto Yamal LNG, por exemplo, é uma megainiciativa russa que exporta gás natural liquefeito diretamente para a Ásia por essa nova via.
Mas os interesses russos não estão isolados. A China, que se autodeclara um “Estado próximo ao Ártico”, tem integrado o desenvolvimento da Rota do Norte à sua Iniciativa do Cinturão e Rota. O país asiático investe em portos, infraestrutura de telecomunicações e pesquisas científicas na região. Companhias chinesas possuem participações importantes em projetos energéticos como o Arctic LNG 2, reforçando a presença econômica de Pequim no círculo polar.
Os Estados Unidos observam essa movimentação com crescente preocupação. A Groenlândia, embora politicamente vinculada à Dinamarca, tem autonomia em diversas áreas e controle direto sobre seus recursos minerais. A ilha abriga reservas valiosas de terras raras, níquel, urânio e zinco — todos elementos fundamentais para as indústrias de defesa, tecnologia e transição energética. Em um momento em que o Ocidente busca reduzir sua dependência de cadeias de suprimento controladas pela China, garantir o acesso a esses materiais tornou-se uma questão estratégica para Washington.
Não por acaso, os EUA abriram em 2020 um consulado em Nuuk, capital da Groenlândia, após quase sete décadas sem presença diplomática na ilha. Além disso, prometeram apoio financeiro a projetos de desenvolvimento local e firmaram acordos para o mapeamento de depósitos minerais. Os americanos também têm reforçado a presença militar no Ártico, por meio de exercícios navais com o Canadá e a Noruega, além de reativarem unidades da Força Aérea posicionadas na região.
Outros países europeus, como Noruega, Dinamarca e Finlândia, também ampliam suas operações no Ártico, com ênfase na pesquisa científica, na exploração de petróleo offshore e no monitoramento ambiental. A União Europeia publicou em 2021 uma nova política para o Ártico, na qual enfatiza a importância da região para o futuro energético e climático do continente.
A dimensão econômica desse novo interesse global pelo Ártico, portanto, é vasta. Estimativas do US Geological Survey apontam que a região pode conter até 13% do petróleo e 30% do gás natural ainda não descobertos do planeta. Além disso, há enorme potencial para mineração de cobre, ouro, diamantes e, principalmente, terras raras — insumos-chave para baterias, turbinas eólicas, painéis solares e componentes eletrônicos.
O que se desenha, assim, é um mapa de interesses sobrepostos, em que o controle de rotas marítimas, reservas energéticas e jazidas minerais se combinam com agendas geopolíticas e militares. A proposta de Trump, ridicularizada à época, antecipava uma tendência que se tornou evidente nos anos seguintes: o Ártico não é mais uma periferia do mundo. É, agora, seu novo centro estratégico.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X