
O mundo vem atravessando uma onda articulada de nacionalismo, que não se restringe ao Ocidente, mas ressoa também na África e na Ásia, criando uma dinâmica que aponta para uma possível reversão do processo de globalização. Se no século XX houve movimentos importantes de afirmação nacional — na Europa pós‑Guerras Mundiais, na África em busca da descolonização, e na Índia durante sua luta por independência —, agora assistimos a uma nova fase, marcada por reações às crises econômicas, insegurança cultural e temores de perda de soberania diante de fluxos migratórios, tecnologia e acordos transnacionais.
Em muitos países ocidentais, o nacionalismo voltou sob uma faceta do chamado “neo‑nacionalismo”: com discursos identitários, protecionistas e anti‑globalização. Exemplos como o Brexit no Reino Unido e a eleição de líderes populistas nos EUA e Europa manifestam uma rejeição à fluidez fronteiriça, à imigração e ao tecnocrático, em nome de maior controle político e cultural. Esse movimento desacelera acordos comerciais, alimenta pressões sobre instituições supranacionais como a União Europeia e gera políticas de barreiras tarifárias e veto à imigração.
Porém essa onda nacionalista extrapola o mundo ocidental. Na África, a independência nacional outrora tão reverenciada — como no caso dos movimentos pan‑africanistas inspirados em Nkrumah — tem dado lugar a nacionalismos que enfatizam a identidade étnica, como o nacionalismo amhara na Etiópia, com reivindicações por reconhecimento político e territorial. São movimentos que reivindicam poder local contra uma elite central, mas que também questionam narrativas globais e estreitam laços comerciais com potências emergentes, reduzindo interdependência regional e global.
Na Ásia, o cenário também exibe versões diversas de nacionalismo. Na China, há um nacionalismo de Estado assertivo, que retrabalha o orgulho civilizacional e impulsiona políticas de autossuficiência tecnológica. Já a Índia vive um nacionalismo populista, com foco em uma identidade hindu, defesa da cultura local e políticas econômicas nacionalistas. Sob os governos nacionalistas, ambos os países têm imposto barreiras a investimentos estrangeiros, promovido conteúdo nacional e reforçado seu controle sobre a sociedade, numa resposta ao impacto da globalização e à dependência externa.
Esses fenômenos têm um impacto claro na dinâmica de globalização. Quando países que tradicionalmente se inseriam em cadeias globais optam por restringir mercados, controlar fronteiras e priorizar empresas nacionais, ocorre uma reversão dos processos de integração. A globalização, que até então se baseava em comércio livre, mobilidade e governança multilateral, passa a ceder espaço para acordos bilaterais, blocos regionais fechados ou mesmo modelos autossuficientes. A fragmentação das cadeias produtivas e dos blocos comerciais indicam uma tendência de “desglobalização econômica”.
Historicamente, podemos traçar paralelos claros. No final do século XIX e início do século XX, a Europa viveu um nacionalismo marcado por protecionismo, rivalidades imperialistas e corrida armamentista, que culminou na Primeira Guerra Mundial — um colapso do sistema de integração da Belle Époque. Após a Segunda Guerra, o Ocidente buscou reconstruir uma ordem global liberal através de instituições como ONU, OMC e UE, em resposta ao nacionalismo excludente e destrutivo. O momento atual pode indicar uma ruptura semelhante, com o ressurgimento de agendas nacionalistas que priorizam identidades locais em detrimento de cooperação internacional.
Na China, por exemplo, o resgate da narrativa de grandeza civilizacional e a ofensiva por “autossuficiência digital” ressoam como um nacionalismo revisionista, que expande fronteiras sem se submeter completamente à ordem internacional anterior. Na Índia, a volta a políticas protecionistas e o estímulo à indústria local (Make in India) acompanham uma narrativa que reforça o orgulho nacional em detrimento da integração econômica global.
Na África, a recuperação de rostos e narrativas nacionais — por vezes com ênfase étnica — questiona modelos de governança continental e retoma discursos que foram fundamentais nos movimentos de libertação, mas que agora servem para consolidar pólos económicos autônomos ou alianças regionais restritivas.
Esse padrão convergente mostra que a atual onda nacionalista é multifacetada, mas unificada pelo descolamento de cadeias globais, e pelo reforço de fronteiras — reais ou simbólicas. Não se trata apenas de patriotismo ou valorização cultural, mas de estratégias políticas e econômicas para conter a interdependência que expõe fragilidades internas. Além disso, as redes digitais e mídias sociais amplificam essas narrativas, fortalecendo identidades coletivas e virtuais que reforçam separações entre “nós” e “eles”.
O perigo mais evidente dessa internacionalização do nacionalismo é a fragmentação do sistema global de cooperação. Se diversos países adotam políticas antagônicas — China e Índia retraindo-se da integração; países africanos reorientando-se em blocos étnicos ou regionais —, haverá menor espaço para resposta coletiva a desafios globais como crise climática, pandemias ou segurança alimentar. Isso reforça movimentos de desglobalização, com menor mobilidade de pessoas, capitais e ideias, e tende a criar um mundo mais segmentado e menos resiliente.
Se, no passado, a globalização erodiu as fronteiras e impulsionou regimes multilaterais, agora o nacionalismo inverte esse processo — erguendo barreiras, repetindo velhos lastros de autoafirmação e delineando cidades‑Estado, blocos regionais e identidades nacionais reacionárias. A lição dos paralelos históricos é clara: nacionalismos celebrados em determinado momento — como aqueles que derrubaram impérios coloniais — podem evoluir, em sua nova fase, para isolacionismo econômico, autoritarismo e confronto geopolítico.
A reflexão que se impõe é sobre a qualidade do nacionalismo que emerge — se é capaz de conviver com pluralismo, democracia e cooperação global, ou se se fecha em si mesmo, sufocando a mobilidade, a inovação colaborativa e a construção comum de respostas globais. No fim, a ascensão desse nacionalismo que reconfigura identidades fronteiriças e vetores econômicos sinaliza não apenas um recuo global, mas um convite à reflexão sobre como garantir, hoje, uma globalização que inclua respeito às singularidades locais sem perder a capacidade de agir juntos.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
