ISSN 2674-8053

China + Rússia + EUA + OTAN (ii): o tiro saiu pela culatra?

Presidentes russo Vladimir Putim e chinês Xi Jinping (Foto kremlin.ru)

Vladimir Putin acaba de retornar de Pequim, onde foi hóspede de honra de Xi Jinping na cerimônia de inauguração das Olimpíadas de Inverno que a República Popular anfitriona este ano. Certamente, ela deseja reiterar a imagem positiva que deixou das Olimpíadas de verão de 2008.

Na sequência dos acontecimentos na Ucrânia, o encontro entre Putin e Xi teve uma mensagem simbólica de grande amplitude. Não somente foram assinados vários acordos, entre os quais a elevação das exportações de gás da gigante russa Gazprom para a RPC, do montante de 38 para 48 bilhões de metros cúbicos anuais (lembremo-nos de que o tema é o “nó górdio” no envolvimento dos europeus no projeto dos americanos de intensificarem suas ameaças a Moscou), senão também foi exarado um “comunicado conjunto” que na prática restabelece a união entre os inicialmente parceiros de credo comunista e posteriormente antagonistas até a dissolução da URSS, em 1991. 

Recordemos, a este respeito, que eles chegaram a confrontos armados em 1969 na zona fronteiriça, que nada mais foi que a exacerbação das diferenças ideológicas que tiveram sua origem na década de 50 e intensificaram-se na seguinte em torno da disputa pelo protagonismo na liderança do universo comunista. Naquela época, o “Partido Comunista Chinês” de. Mao já vinha marcando distância dos soviéticos na busca de desenvolver uma ideologia própria, que focava mais o campesinato agrário que os operários urbanos, como era o modelo moscovita. Há que acrescentar ainda a antipatia que Mao nutria por Kruschev, a quem acusava de leniência com o capitalismo ocidental. 

Este universo teve fim a partir da dissolução da URSS, em 1991, embora o líder soviético Mikhail Gorbachev tenha criticado o PCC pós-maoísta quando este assentiu a que milionários chineses afluentes “abandonassem” a via socialista. Entretanto, com o processo de dissolução da União Soviética, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, a própria URSS se voltou para a privatização.  

No universo que se descortina, a visita de Putin era muito aguardada: a agência de notícias estatal chinesa, Xinhua, celebrou o “futuro compartilhado” entre os dois países. Putin, de sua parte, enfatizou que o volume de comércio bilateral aumentou mais de um terço, atingindo a cifra de US$ 146 bilhões, em 2021. Ele descreveu também alguns projetos futuros – que incluem usinas nucleares – baseados em “tradições centenárias de amizade e confiança”… 

Este encontro ocorre num momento particularmente sensível em que as relações da Rússia com o Ocidente sofrem crescente degradação. Segundo Alexander Gabuev, líder do programa Rússia-Ásia-Pacífico do “Centro Carnegie Moscou”, “a Ucrânia desempenhou um papel importante nas relações entre a Rússia e a China… a anexação da Crimeia, em 2014, e as sanções ocidentais forneceram o condimento secreto para que os dois países se aproximassem cada vez mais”. O professor de relações internacionais da “Universidade do Extremo Oriente”, de Vladivostok, Artyom Lukin, concorda. Para ele, “esta é uma relação que está em formatação há anos, e Moscou está psicologicamente pronta para isso…. os tomadores de decisão em Moscou entendem que sem o apoio da China, a Rússia seria incapaz de resistir ao confronto com o Ocidente.” Segundo a chefe de estudos da China no “Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais”, de Washington, Jude Blanchette, “para o Ocidente, quanto mais a Rússia se aproxima da China, menos eficazes as sanções se tornam…é desconfortável para os americanos admitir que são nossas políticas que em muitos aspectos estão agindo como um agente de coesão entre Moscou e Pequim”.  

Os analistas reconhecem, entretanto, que haverá obstáculos na estrada desta amizade renovada. “A Rússia tornou-se obviamente o parceiro mais fraco ao longo do tempo”, diz Alexander Gabuev, que acredita que disputas territoriais podem afetar as relações: …”não é que a China busque recuperar o Extremo Oriente… mas isto poderia realmente envenenar as relações entre eles.”, conclui. Para Annette Bohr, “as sanções relacionadas com a Ucrânia podem ter reunido os dois países, mas a China ainda não reconheceu formalmente a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014”… 

Entrementes, o “Comunicado Conjunto” firmado em Pequim apresenta um cenário inteiramente distinto e totalmente alvissareiro. Alguns trechos dele: 

“- hoje, o mundo está passando por mudanças importantes, e a humanidade está entrando em uma nova era de rápido desenvolvimento e profunda transformação. Assiste ao desenvolvimento de processos e fenômenos como multipolaridade, globalização econômica, advento da sociedade da informação, diversidade cultural, transformação da arquitetura de governança global e ordem mundial. Há crescente inter-relação e interdependência entre os Estados; essa tendência surgiu para a redistribuição do poder no mundo, e a comunidade internacional está revelando demanda crescente por liderança que vise o desenvolvimento pacífico e gradual… 

– alguns atores que representam uma minoria na escala internacional continuam a defender abordagens unilaterais para tratar de questões internacionais e recorrer à força; interferem nos assuntos internos de outros Estados, infringindo seus legítimos direitos e interesses, e incitam contradições, diferenças e confrontos, dificultando assim o desenvolvimento e o progresso da humanidade e contrários à comunidade internacional… 

– as partes compartilham o entendimento de que a democracia é um valor humano universal em vez de um privilégio de um número limitado de Estados, e que sua promoção e proteção é uma responsabilidade comum a toda a comunidade mundial… 

– não há um modelo único para orientar os países no estabelecimento da democracia. Uma nação pode escolher as formas e métodos de implementação de democracia que melhor se adequem ao seu momento particular, com base em seu sistema social e político, sua história, tradições e características culturais únicas. Cabe tão somente ao povo do país decidir se seu Estado é democrático… os cidadãos de ambos os países estão certos da sua escolha e respeitam os sistemas democráticos e tradições dos outros Estados… 

– as tentativas de certos Estados de impor seus próprios “padrões democráticos” a outros países, monopolizar o direito de avaliar o nível de cumprimento dos critérios democráticos, traçar linhas divisórias baseadas em fundamentos de ideologia, estabelecendo blocos exclusivos e alianças de conveniência, provam não ser nada além de desrespeito à democracia e contrários ao espírito e aos seus verdadeiros valores. Tais tentativas de hegemonia representam sérias ameaças à paz e estabilidade globais e regionais, e minam a estabilidade da ordem mundial; 

– as partes acreditam que certos Estados, alianças militares e políticas e coalizões buscam obter, direta ou indiretamente, vantagens militares unilaterais em detrimento da segurança de outros, inclusive empregando práticas de concorrência desleal, intensificando a rivalidade geopolítica, alimentando o antagonismo e o confronto, prejudicando seriamente a ordem e a segurança internacionais, e a estabilidade estratégica global. AS PARTES SE OPÕEM A UMA NOVA EXPANSÃO DA OTAN e pedem à Aliança que abandone suas abordagens ideológicas de Guerra Fria, respeite a soberania, a segurança e os interesses de outros países, a diversidade de suas origens civilizacionais, culturais e históricas, e mantenha uma atitude justa e objetiva em relação ao desenvolvimento pacífico de outros Estados. As partes se posicionam contra a formação de estruturas fechadas de bloco e campos opostos na região Ásia-Pacífico e permanecem altamente vigilantes com relação ao impacto negativo da estratégia Indo-Pacífico dos Estados Unidos…  

– as partes buscam avançar em seus trabalhos para vincular os planos de desenvolvimento da “União Econômica Eurasiática” e da “Belt and Road Initiative” com o objetivo de intensificar a cooperação pragmática em várias áreas e promover uma maior interconexão entre as regiões da Ásia-Pacífico e a Eurásia…para fomentar o desenvolvimento de associações regionais, bem como os processos de integração bilateral e multilateral em benefício dos povos do continente eurasiático…  

– as partes reafirmam que as novas relações interestatais entre a Rússia e a China são superiores às alianças políticas e militares da era da Guerra Fria. A AMIZADE ENTRE OS DOIS LADOS NÃO TEM LIMITES, NÃO HÁ ÁREAS “PROIBIDAS” À COOPERAÇÃO, e que o fortalecimento desta cooperação estratégica bilateral não é direcionado contra terceiros países, nem afetado pela mudança do ambiente internacional e as circunstâncias com relação a terceiros países; 

– o comunicado elenca ainda a estratégia de atuação de ambos junto a várias instituições e organismos internacionais. 

Resumindo, Rússia e China redesenham a geopolítica regional (internacional?…) a partir de uma percepção comum contrária à que percebem ser uma invasão do Ocidente/EUA/OTAN nas suas áreas de influência e elencam os territórios proibidos: Taiwan…Ucrânia…e até mesmo Xinjiang, embora não conste (ainda) da temática explicitada. E juntas representam uma força considerável!  

Uma vez mais, Ocidente X Oriente pós-comunista numa nova “guerra fria”? Chineses e russos, “amigos para siempre”, prá valer…ou retórica? Joe Biden e seus afiliados que se cuidem… 

Sugiro aos amigos que se interessarem que leiam o “Comunicado Conjunto” na íntegra:

http://en.kremlin.ru/supplement/5770

Leia também o primeiro artigo em https://mapamundi.org.br/2022/russia-a-ucrania-os-estados-unidos-a-china-a-europa-e-a-otan/

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.