ISSN 2674-8053

Rússia, a Ucrânia, os Estados Unidos, a China, a Europa e a Otan

Metendo o bedelho…Nunca pus os pés na Rússia, mas servi em Astana – hoje, Nursultan -, no Cazaquistão, e arrisco esboçar a minha percepção a partir da ótica de um país vizinho. 

Para mim, o quadro geopolítico que define a relação entre a Rússia e a Ucrânia se aplica a todo o universo “ex-soviético”, como é o caso do Cazaquistão. São ambos ex-repúblicas da URSS, vizinhos contíguos da Rússia e ex-seguidores da mesma cartilha ideológico/político/econômico marxista que predominou em toda a região até 1991, quando a União Soviética se dissolveu. A experiência independente destes países tem, portanto, apenas 31 anos, ou seja, são Estados “jovens” que anteriormente, como “satélites”, serviam sobretudo como celeiro, no caso do Uzbequistão, e terreno de testes nucleares, como no do Cazaquistão. 

Este processo, em todos eles, foi liderado por ex-membros do KGB, que buscaram uma maneira de conviver, de um lado, com o espólio do passado e, de outro, buscar perfil próprio. Situação muito complexa, percebi, envolta no dilema de encontrarem uma fórmula que os libere dos “grilhões” russos e os insira no mundo globalizante sem espicaçar a ex-“madrinha” (ou madrasta…). O caso da Ucrânia é similar, porque, assim como as ex-repúblicas da Ásia Central, liberou-se do jugo soviético somente em 1991. E enfrenta como as outras o mesmo dilema “atração X repulsão”, com a diferença de que é o “tampão” geográfico entre a Rússia e a Europa; portanto, muito mais estratégica em termos geopolíticos, o que levanta questões de segurança sérias para os ocidentais/ europeus. 

Os que tivemos a oportunidade de viver na região estamos conscientes do poderio da Rússia sobre a vizinhança. Costumo dizer que a noção de império subsiste desde a época em que o centro político da Eurásia passou a centralizar-se em Moscou, quando foi fundado em Kiev, no século IX, o primeiro estado eslavo, que adotou o cristianismo ortodoxo, dando início à síntese das culturas bizantina e eslava, que acabou por definir a cultura russa. O vasto espaço hoje chamado “Rússia” cobre uma área cujos soberanos sempre tiveram a convicção profunda da sua hegemonia sobre as tribos nômades da Ásia Central e posteriormente sobre os impérios que elas formaram. A URSS foi apenas um capítulo no discurso do Poder (com P maiúsculo) que Moscou autoproclama. A União Soviética esfacelou-se, mas o Kremlin permanece cônscio da sua capacidade de irradiação, o que a vizinhança compartilha, e de certo modo, “aceita”. E Vladimir Putin é o atual “Czar”. Tocar no seu “feudo”, principalmente nos territórios contíguos, significa para ele uma ameaça – política inclusive – superlativa. Nesse contexto, “aliciar” a Ucrânia para o universo da OTAN/Ocidente repersenta para Putin dupla afronta (e ameaça): à hegemonia plurissecular russa na região e ao seu poder/imagem pessoal.  

Paranoia, mistificação, ou “real politik”? 

Acho que é preciso entender isto, o que os americanos, a meu juízo, ainda não conseguiram, por estarem atados, de sua parte, a valores civilizacionais – o tal do “Ocidente”- muito enraizados, que persistem em impor “erga omnes”. E depois do “fracasso” de Cabul podem estar buscando “salvar a face”… O presidente Joe Biden, que no início procurava alguma forma de composição com Vladimir Putin a fim de evitar chegar às “vias de fato” logo após a refrega de Cabul, vem aumentando o seu tom de voz e instou os membros da OTAN a se juntarem a eles nessa possível investida. Nada diferente do que aconteceu no Iraque, Afeganistão e na Líbia, na história recente, e nas Coreias e Vietnã, de memória mais antiga. O mesmo modelo: 1) diagnóstico distorcido da situação, tanto política quanto logística do país/região alvo; 2) aliciamento de parceiros, membros da OTAN e “bençãos” do Conselho de Segurança da ONU, na maioria dos casos; 3) invasão; 4) confrontos com a resistência local; 5) crescente antagonismo da opinião pública, americana e internacional; 6) conclusão da impossibilidade da vitória; e finalmente 7) saída, na maioria das vezes (Coreias, Vietnã, Iraque, Líbia, Síria e Afeganistão) apressada e percebida como derrota. Já vimos este filme… 

É por isto que, desta feita os europeus, sobretudo os alemães, tergiversam em assumir uma posição mais incisiva e beligerante e se propõem a exercer algum tipo de mediação. Não somente porque desta vez o “terreno de batalha” se situa no próprio continente (o que lhes deve trazer tristes memórias), senão também porque dependem substancialmente do gás que a Rússia lhes exporta, como temos lido e ouvido. Em suma, eles estão na “linha de frente”.  

E a China, como esperado, acaba de lançar um alerta aos ocidentais no sentido de respeitarem a posição dos russos. Matéria do Estadão de hoje estampa a reação dos chineses aos acontecimentos. O Chanceler Wang Yi, afirmou que “Moscou tem preocupações de segurança razoáveis, que deveriam ser levadas a sério”. E em vídeo-conferência com o Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, disse “ser contra a expansão da OTAN na Europa”. Ainda nesta mesma conversa, ele teria assinalado que “russos e americanos deveriam abandonar a mentalidade da Guerra Fria e negociar de maneira equilibrada uma solução”. Ou seja, a China pós-westphaliana posiciona-se contra a mentalidade “territorialista” dos russos e ocidentais, que para ela não faz mais sentido no mundo globalizado do século XXI. 

Chegaremos às vias de fato? …Seria, em última instância, uma confrontação entre o Ocidente e a Rússia + China?… Devaneio acadêmico?…Perguntas ainda sem resposta. Mas acredito que qualquer mobilização das tropas da OTAN, se acontecer, deverá ter caráter “reducionista”: Cabul ainda está muito presente na memória da organização. Neste estado de coisas, estaria ela preparada, ou sequer disposta a oferecer coadjuvância como das vezes anteriores e constituir, uma vez mais, o “álibi” para a intervenção americana? E a Europa consentiria em tornar-se novamente um campo de guerra? E quem assumiria os “ônus” de um eventual fracasso? 

Ainda bem que estamos longe…já temos as nossas próprias guerras, né? 

To be continued… 

Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão abaixo:

https://gauchazh.clicrbs.com.br/mundo/noticia/2022/01/china-apoia-putin-em-conflito-contra-ocidente-na-ucrania-ckyy9xg9q001f01fbsnzhyku9.html?fbclid=IwAR2Km5LoEmvIOtEuA4arIYXj_OTv5O7XJKzUSwga_BX-KmL9muc9dcAgt7Q

Fausto Godoy
Doutor em Direito Internacional Público em Paris. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Déli, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabade (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Também cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 15 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século 21 – previsão que, agora, vê cada vez mais perto da realidade.