Metendo o bedelho…Nunca pus os pés na Rússia, mas servi em Astana – hoje, Nursultan -, no Cazaquistão, e arrisco esboçar a minha percepção a partir da ótica de um país vizinho.
Para mim, o quadro geopolítico que define a relação entre a Rússia e a Ucrânia se aplica a todo o universo “ex-soviético”, como é o caso do Cazaquistão. São ambos ex-repúblicas da URSS, vizinhos contíguos da Rússia e ex-seguidores da mesma cartilha ideológico/político/econômico marxista que predominou em toda a região até 1991, quando a União Soviética se dissolveu. A experiência independente destes países tem, portanto, apenas 31 anos, ou seja, são Estados “jovens” que anteriormente, como “satélites”, serviam sobretudo como celeiro, no caso do Uzbequistão, e terreno de testes nucleares, como no do Cazaquistão.
Este processo, em todos eles, foi liderado por ex-membros do KGB, que buscaram uma maneira de conviver, de um lado, com o espólio do passado e, de outro, buscar perfil próprio. Situação muito complexa, percebi, envolta no dilema de encontrarem uma fórmula que os libere dos “grilhões” russos e os insira no mundo globalizante sem espicaçar a ex-“madrinha” (ou madrasta…). O caso da Ucrânia é similar, porque, assim como as ex-repúblicas da Ásia Central, liberou-se do jugo soviético somente em 1991. E enfrenta como as outras o mesmo dilema “atração X repulsão”, com a diferença de que é o “tampão” geográfico entre a Rússia e a Europa; portanto, muito mais estratégica em termos geopolíticos, o que levanta questões de segurança sérias para os ocidentais/ europeus.
Os que tivemos a oportunidade de viver na região estamos conscientes do poderio da Rússia sobre a vizinhança. Costumo dizer que a noção de império subsiste desde a época em que o centro político da Eurásia passou a centralizar-se em Moscou, quando foi fundado em Kiev, no século IX, o primeiro estado eslavo, que adotou o cristianismo ortodoxo, dando início à síntese das culturas bizantina e eslava, que acabou por definir a cultura russa. O vasto espaço hoje chamado “Rússia” cobre uma área cujos soberanos sempre tiveram a convicção profunda da sua hegemonia sobre as tribos nômades da Ásia Central e posteriormente sobre os impérios que elas formaram. A URSS foi apenas um capítulo no discurso do Poder (com P maiúsculo) que Moscou autoproclama. A União Soviética esfacelou-se, mas o Kremlin permanece cônscio da sua capacidade de irradiação, o que a vizinhança compartilha, e de certo modo, “aceita”. E Vladimir Putin é o atual “Czar”. Tocar no seu “feudo”, principalmente nos territórios contíguos, significa para ele uma ameaça – política inclusive – superlativa. Nesse contexto, “aliciar” a Ucrânia para o universo da OTAN/Ocidente repersenta para Putin dupla afronta (e ameaça): à hegemonia plurissecular russa na região e ao seu poder/imagem pessoal.
Paranoia, mistificação, ou “real politik”?
Acho que é preciso entender isto, o que os americanos, a meu juízo, ainda não conseguiram, por estarem atados, de sua parte, a valores civilizacionais – o tal do “Ocidente”- muito enraizados, que persistem em impor “erga omnes”. E depois do “fracasso” de Cabul podem estar buscando “salvar a face”… O presidente Joe Biden, que no início procurava alguma forma de composição com Vladimir Putin a fim de evitar chegar às “vias de fato” logo após a refrega de Cabul, vem aumentando o seu tom de voz e instou os membros da OTAN a se juntarem a eles nessa possível investida. Nada diferente do que aconteceu no Iraque, Afeganistão e na Líbia, na história recente, e nas Coreias e Vietnã, de memória mais antiga. O mesmo modelo: 1) diagnóstico distorcido da situação, tanto política quanto logística do país/região alvo; 2) aliciamento de parceiros, membros da OTAN e “bençãos” do Conselho de Segurança da ONU, na maioria dos casos; 3) invasão; 4) confrontos com a resistência local; 5) crescente antagonismo da opinião pública, americana e internacional; 6) conclusão da impossibilidade da vitória; e finalmente 7) saída, na maioria das vezes (Coreias, Vietnã, Iraque, Líbia, Síria e Afeganistão) apressada e percebida como derrota. Já vimos este filme…
É por isto que, desta feita os europeus, sobretudo os alemães, tergiversam em assumir uma posição mais incisiva e beligerante e se propõem a exercer algum tipo de mediação. Não somente porque desta vez o “terreno de batalha” se situa no próprio continente (o que lhes deve trazer tristes memórias), senão também porque dependem substancialmente do gás que a Rússia lhes exporta, como temos lido e ouvido. Em suma, eles estão na “linha de frente”.
E a China, como esperado, acaba de lançar um alerta aos ocidentais no sentido de respeitarem a posição dos russos. Matéria do Estadão de hoje estampa a reação dos chineses aos acontecimentos. O Chanceler Wang Yi, afirmou que “Moscou tem preocupações de segurança razoáveis, que deveriam ser levadas a sério”. E em vídeo-conferência com o Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, disse “ser contra a expansão da OTAN na Europa”. Ainda nesta mesma conversa, ele teria assinalado que “russos e americanos deveriam abandonar a mentalidade da Guerra Fria e negociar de maneira equilibrada uma solução”. Ou seja, a China pós-westphaliana posiciona-se contra a mentalidade “territorialista” dos russos e ocidentais, que para ela não faz mais sentido no mundo globalizado do século XXI.
Chegaremos às vias de fato? …Seria, em última instância, uma confrontação entre o Ocidente e a Rússia + China?… Devaneio acadêmico?…Perguntas ainda sem resposta. Mas acredito que qualquer mobilização das tropas da OTAN, se acontecer, deverá ter caráter “reducionista”: Cabul ainda está muito presente na memória da organização. Neste estado de coisas, estaria ela preparada, ou sequer disposta a oferecer coadjuvância como das vezes anteriores e constituir, uma vez mais, o “álibi” para a intervenção americana? E a Europa consentiria em tornar-se novamente um campo de guerra? E quem assumiria os “ônus” de um eventual fracasso?
Ainda bem que estamos longe…já temos as nossas próprias guerras, né?
To be continued…
Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Estadão abaixo: