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Perda de influência dos EUA reacende disputa pelos valores globais

A perda do poder de atração dos Estados Unidos assume hoje uma dimensão crítica, sinalizando uma virada histórica na disputa pelo soft power global. Durante décadas, o estilo de vida americano, seus valores democráticos e seu modelo cultural serviram de farol para grande parte do mundo. Agora, essa posição está fragilizada — e as consequências vão além das fronteiras americanas, jogando incertezas sobre quais princípios morais e políticos dominarão no cenário mundial.

A erosão do soft power dos EUA reflete um fenômeno multifacetado. Internamente, desafios econômicos crônicos como o endividamento público, a desigualdade e uma crise de representatividade política enfraqueceram a imagem de um país confiável e atraente. Internacionalmente, a ascensão de outras potências — como China, Índia e diversas nações do Sudeste Asiático — oferece narrativas alternativas, muitas vezes pautadas em histórias de sucesso rápido, assertividade geopolítica e modelos de desenvolvimento híbridos. Isso não significa que essas potências adotem valores democráticos liberais, mas que atraem por demonstrar capacidade de efetivar mudanças tangíveis, criando uma nova “poética do poder” que pode rivalizar ou mesmo superar o modelo americano.

Embora os Estados Unidos sejam o maior expoente da ordem liberal internacional, eles não estão sozinhos nessa construção. A União Europeia, com sua arquitetura institucional voltada à proteção dos direitos humanos, ao multilateralismo e à regulação civilizatória da economia, permanece como um importante pilar desse conjunto de valores. Países como Alemanha, França, Suécia e Países Baixos, por exemplo, mantêm políticas domésticas e externas que reforçam as liberdades civis, a inclusão social e a defesa ativa do Estado de Direito. Ainda assim, a força conjunta dos EUA e da Europa como referência moral e política no mundo parece estar sob pressão crescente.

A eficácia do soft power ocidental sempre se apoiou em pilares como liberdade de expressão, direitos civis, mobilidade social e acesso à educação superior. As universidades europeias, a indústria cultural americana e os marcos jurídicos que protegem minorias e garantem liberdade de imprensa serviram como modelos de referência. No entanto, crises políticas nos EUA — como a polarização extrema, a violência armada e o questionamento do próprio sistema eleitoral — assim como o avanço de movimentos ultranacionalistas na Europa, enfraquecem a credibilidade desses modelos. Jovens em países da América Latina, África e Ásia já não enxergam mais o Ocidente como símbolo maior de liberdade, mas como regiões em disputa interna, inseguras e, por vezes, paralisadas diante de seus próprios dilemas.

Esse enfraquecimento do soft power tem consequências diretas no cenário internacional. Novos blocos de influência fomentam valores que diferem — e algumas vezes se opõem — aos princípios liberais clássicos. A China promove uma ideia de multipolaridade pragmática, em que liberdade individual e transferência de poder para o Estado central são trocadas por estabilidade econômica e controle social. A Índia, por sua vez, constrói um modelo distinto: uma democracia formal com traços crescentes de centralização, nacionalismo religioso e uma agenda econômica voltada à autossuficiência. Países do Sudeste Asiático observam com atenção esse modelo indiano que combina crescimento, identidade nacional forte e controle social mais amplo, mas sem o perfil autoritário explícito de regimes fechados.

O risco reside justamente na substituição de uma ordem fundada em direitos humanos universais e liberdades civis por modelos híbridos, autoritários ou iliberais. Quando Estados Unidos e Europa deixam de ser referências claras, abre-se espaço para que países menores escolham fórmulas alternativas — algumas inspiradas na China, outras na Índia, outras ainda em versões regionais de tecnocracia centralizada, com menor ênfase em transparência institucional e participação cidadã. Isso pode gerar uma fragmentação global de valores, com redes diferentes — tecnológicas, diplomáticas, comerciais — organizadas em torno de princípios cada vez mais distintos e, muitas vezes, antagônicos.

Em países onde o Estado se arroga o monopólio moral e político, liberdades individuais tendem a ser suprimidas. Há um impacto profundo na vida de cidadãos que passam a conviver com restrições ao direito de expressão, monitoramento digital em massa, perseguição a minorias e restrições à imprensa. Alguns modelos asiáticos, ainda que não assumam frontalmente o autoritarismo, implementam legislações que enfraquecem o judiciário independente, limitam a atuação da sociedade civil e fortalecem formas sutis de censura. Esses formatos ganham legitimidade quando acompanhados de crescimento econômico, baixa criminalidade e estabilidade política — elementos que seduzem elites governantes e parte da população em países em desenvolvimento.

A perda do soft power ocidental também interfere diretamente na governança global. Instituições multilaterais, como a ONU, a OMC e tribunais internacionais, que vieram sendo moldadas conforme valores liberais, podem ser enfraquecidas com o transbordamento de novos blocos de influência. Se discursos híbridos ganham força diplomática — e respaldam violações de direitos — a coesão de regimes criados para proteger vozes vulneráveis fica comprometida. Países em desenvolvimento, pressionados por ofertas de empréstimos baratos, tecnologia de ponta e “parcerias sem exigências políticas”, muitas vezes acabam aderindo a culturas políticas paternalistas ou fortemente nacionalistas.

É aqui que a fragilização do Ocidente ganha contornos perigosos: não é apenas uma crise de identidade dos EUA ou da Europa, mas uma abertura para redes alternativas que privilegiam controle, hierarquia e, muitas vezes, menos direitos. Sem uma presença moral e diplomática robusta de democracias consolidadas — como EUA, Alemanha, França e países nórdicos — não há garantias de que o mundo continuará alinhado a princípios fundamentais como liberdade de imprensa, justiça igualitária, proteção a minorias e independência judicial.

Por outro lado, a incapacidade do Ocidente de renovar sua narrativa de atração é tanto resultado quanto catalisador desse fenômeno. É nesse vácuo que a iniciativa de reformas democráticas em países periféricos se enfraquece, quando modelos alternativos se mostram mais eficientes no curto prazo. Estudantes africanos ou asiáticos em busca de mobilidade social enxergam não apenas em Yale ou na Universidade de Oxford uma chance, mas também em centros tecnológicos da China ou em polos de inovação na Índia, com oportunidades de emprego imediato, carreira e estabilidade — o que torna as rotas liberais menos exclusivas.

O mundo, portanto, precisa de um equilíbrio. A dissolução da liderança ocidental em soft power não é inevitável, mas exige reformas profundas: restauração da coesão democrática interna, defesa consistente dos direitos humanos e uma diplomacia pública que mostre ao mundo que os valores liberais ainda são capazes de produzir bem-estar, pluralismo e inovação. Do contrário, assistiremos à ascensão de um mundo normativamente fragmentado, dividido entre zonas democráticas e autoritárias — com o real risco de conflitos de valores, nações silenciadas ou abandonadas à lógica da força.

Se os Estados Unidos e a União Europeia não reconquistarem sua presença moral, renovando sua capacidade de escuta, inclusão e transformação, a principal vítima será o próprio tecido normativo da globalização — e será difícil garantir que o futuro se organize em torno dos direitos e liberdades consagrados. O risco não é só de uma hegemonia enfraquecida, mas de um mundo menos livre.