Polemizando… Tempos bicudos os nossos, de controvérsias, “fake news”, antagonismos e, sobretudo, de muita incompreensão.
Trancado em casa, li a matéria – “Uma guerra global” – que o cronista Lourival Sant´ Anna publicou no Estadão do dia 29/03 a respeito das divisões entre os países quanto às diferentes maneiras pelas quais eles estão enfrentando a tragédia. Ele fez a seguinte observação sobre como o leste da Ásia está conseguindo curvar a epidemia mais rapidamente que o Ocidente: “…não foi preciso obrigar a nada: o bom senso prevaleceu na população e seus líderes religiosos, que não resistiram a suspender suas atividades”…
Por que isto está acontecendo?
Esta afirmação vem ao encontro do que tenho ensinado aos meus alunos de Relações Internacionais: a diferença fundamental entre o comportamento das sociedades nas duas metades do planeta – o Ocidente e a Ásia do leste – reside na maneira pela qual o indivíduo se insere no seu contexto.
Vamos por partes.
No quadrante ocidental impera desde o período clássico o germe dos direitos humanos seguindo a tradição do Direito Natural, como estudamos na faculdade. Embora não explicitados como tal, esses direitos já podiam ser encontrados na filosofia grega primitiva. De acordo com o pensamento inicial da Grécia antiga, os indivíduos ao se libertarem da ordem divina e da natureza foram buscar discernimento no “humano” e no livre arbítrio.
Assim é que em 1776, deflagrado o processo de independência dos Estados Unidos, os direitos individuais foram inseridos já na sua “Declaração de Independência”: direito à vida, à liberdade, à busca da felicidade, e etc. Estas ideias influenciaram outros movimentos libertários similares no mundo, em particular a Revolução Francesa, em 1789, da qual resultou a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. Nela ficou garantido que todos os cidadãos franceses deveriam ter direito à liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão. Ou seja, a primazia para as sociedades ocidentais é o indivíduo.
Vamos à China do período da “Primavera e Outono” da dinastia Zhou (551–479 a.C). Confúcio, um tradicionalista, então difundia pelas cortes imperiais o seu conceito sobre o comportamento do indivíduo no contexto social. Nos seus ensinamentos, consolidados nos “Analectos”, ele afirma: “…se um homem é um bom filho e um bom irmão em casa, pode-se esperar que se comporte bem em sociedade….Tzu-yu disse: É raro um homem que é bom como filho e obediente como jovem ter a inclinação de transgredir contra seus superiores; não se sabe de alguém que, não tendo tal tendência, tenha iniciado uma rebelião. (I.2). E continua para formular a conclusão lógica de que “ser um filho bom e um jovem obediente é, talvez, a raiz do caráter de um homem”. Ou seja, a primazia nos países de inspiração confucionista, como a China, as Coreias e o Japão pertence à sociedade.
“Bizantinice” acadêmica?…
Isto é, a meu ver, a diferença fundamental que tem diferenciado o comportamento das sociedades asiáticas e ocidentais no enfrentamento da pandemia. Enquanto os países deste quadrante perseveraram no início em minimizar os seus efeitos, priorizando salvaguardar o indivíduo das consequências econômicas, infalivelmente nefastas, que o afetariam, a China, a Coreia e o Japão, após um curto momento de tergiversação logo tomaram atitudes radicais, como a RPC que, não só isolou uma cidade da dimensão de Wuhan como também construiu um hospital enorme em cerca de doze dias! A Coreia do Sul, por sua vez, iniciou rapidamente testes para detectar os indivíduos contaminados.
E hoje a China está enviando especialistas, medicamentos e aparelhos para o mundo todo, e transferindo a sua experiência na “vitória” (?) sobre a pandemia aos países da Europa. Com isto, evidentemente, ela busca resgatar a “mancha” que ficou na sua imagem internacional por ter sido a “causadora” da tragédia…
A pergunta que um ocidental faria é: estas medidas draconianas foram impostas “erga omnes” pelo governo chinês e o Partido Comunista, sem resistência da população, diferentemente de como acontece por estas bandas? A resposta tem de ser matizada. Certamente terá havido uma pressão inicial sobre o comportamento das pessoas, mas elas aderiram imediatamente, e com empenho, à luta contra o corona vírus. É aí que reside o conceito confucionista de que o bom cidadão contribui para a felicidade do seu lar e da sua sociedade. Governo e população se juntaram numa luta inarredável contra a epidemia. E o resultado aí está (pelo que se sabe, é claro…).
Deste lado, os países tardaram em calcular o perigo real e tergiversaram em adotar medidas radicais, impopulares, mas indispensáveis. E a consequência também aí está: os governos enfrentam, desbussolados, o número de contaminados e mortes. Na Espanha e Itália estes números crescem exponencialmente. E os Estados Unidos se tornaram, ironicamente (?), o epicentro da tragédia, contrariando – e revertendo – as bravatas de D.T. de que o país atravessaria a pandemia de forma tranquila. Por aqui, então, nem se fale…
E ainda não estamos enxergando a luz no final do túnel. Nestes termos, será que, em definitivo, Confúcio estava certo?…
Sugiro aos amigos que leiam a matéria do Lourival Sant’Anna: Mundo se divide em duas abordagens para combater o coronavírus: uma que entende a ameaça que a pandemia representa para a rede hospitalar; outra que prefere pagar para verINTERNACIONAL.ESTADAO.COM.BR