
A proposta de confiscar ativos estatais russos congelados nos países da União Europeia e utilizá-los para financiar a reconstrução da Ucrânia é apresentada por seus defensores como uma medida moral, política e estratégica. Mas, para além da retórica de solidariedade e punição, esse movimento também pode representar oportunidades financeiras e vantagens competitivas para Europa e Estados Unidos — especialmente em tempos de desaceleração econômica e rearranjos geoeconômicos globais.
Hoje, estima-se que mais de US$ 300 bilhões em ativos do banco central russo estejam congelados no Ocidente, dos quais cerca de dois terços encontram-se em instituições financeiras europeias, particularmente na Bélgica. A proposta em discussão envolve não apenas o uso dos rendimentos desses ativos — que renderam bilhões de euros desde o congelamento —, mas também, em alguns cenários, a apropriação definitiva de parte desses recursos.
O primeiro e mais direto benefício financeiro para os países europeus está ligado ao rendimento dos ativos congelados. Ao manter sob controle esses valores — principalmente em títulos soberanos, depósitos bancários e aplicações financeiras ocidentais — os Estados que os abrigam têm gerado lucros significativos por meio da administração desses fundos. Esses lucros, até aqui acumulados sem a necessidade de redistribuição ao Estado russo, podem ser canalizados para o financiamento da Ucrânia, reduzindo o peso direto sobre os contribuintes dos países doadores.
Além disso, há ganhos potenciais de competitividade industrial. O plano europeu prevê que parte dos recursos seja utilizada para reconstruir infraestrutura e reerguer setores econômicos ucranianos em sintonia com as cadeias de produção ocidentais. Isso pode significar, na prática, a integração acelerada da Ucrânia em circuitos produtivos europeus, com custos reduzidos de produção, mão de obra mais barata e proximidade geográfica — oferecendo à indústria europeia um novo polo de competitividade diante da pressão asiática, em especial da China.
Ao financiar a reconstrução ucraniana com ativos russos, a Europa transforma um passivo político em um ativo estratégico: em vez de destinar seus próprios orçamentos, os países da UE se colocam como gestores de uma reconstrução financiada por um inimigo geopolítico. A operação também reforça o papel das instituições europeias na arquitetura de reconstrução global, dando à União Europeia um protagonismo semelhante ao que os Estados Unidos assumiram em momentos anteriores da história, como no pós-guerra com o Plano Marshall.
No caso dos Estados Unidos, embora a maior parte dos ativos congelados não esteja em solo americano, o país se beneficia indiretamente em duas frentes:
Primeiro, a sinalização política de que ativos soberanos podem ser tomados em situações de conflito fortalece o papel do dólar como moeda de refúgio. Muitos países, temendo confisco futuro por razões políticas, podem optar por manter reservas em títulos do Tesouro norte-americano — mesmo sob risco —, consolidando a dominância do sistema financeiro dos EUA.
Segundo, o fortalecimento da Ucrânia como plataforma econômica integrada ao Ocidente cria oportunidades para empresas americanas em setores como energia, reconstrução, agronegócio e tecnologia — o que vem sendo discutido em fóruns empresariais desde 2023.
Mas talvez o ganho menos visível — e mais relevante — seja o enfraquecimento do modelo de reservas internacionais como instrumento de dissuasão dos países rivais. Por décadas, a Rússia acumulou reservas em moedas e instituições ocidentais justamente para evitar ser punida por sanções. Se essas reservas agora podem ser tomadas, mesmo que em nome da justiça internacional, outros Estados podem ver seu acúmulo de reservas como ineficaz. Isso cria insegurança em economias como China, Irã, Arábia Saudita e até Índia — e gera uma reconfiguração das formas de proteção contra a força do Ocidente.
Esse ambiente favorece o Ocidente em dois sentidos: no curto prazo, garante que seus ativos continuem sendo a base do sistema financeiro global; e no longo prazo, força rivais geopolíticos a buscarem alternativas menos eficazes de proteção — o que pode gerar maior volatilidade para esses países e mais controle para os emissores de moeda global, como EUA e UE.
Por fim, há o efeito simbólico que também impacta a economia: o uso de ativos russos como fonte de financiamento serve como mensagem de que o Ocidente ainda detém os instrumentos de poder real, não apenas militares e diplomáticos, mas também econômicos e financeiros. Em um cenário em que a multipolaridade financeira ainda é incipiente, esse tipo de demonstração reforça a posição estrutural das instituições ocidentais como centros de gravidade da ordem mundial — o que, por sua vez, atrai investimentos, reduz custos de captação e fortalece a capacidade de influência.
Ainda que apresentada como uma medida emergencial e de justiça histórica, a proposta de uso dos ativos russos congelados revela também um conjunto de benefícios econômicos e estratégicos para Europa e Estados Unidos — que não se limitam à Ucrânia, mas apontam para uma reafirmação de poder ocidental no sistema internacional. O custo jurídico e político da medida pode ser alto, mas os ganhos potenciais, para quem os calcula do ponto de vista das potências que controlam os fluxos financeiros globais, são significativos.
Pós-Doutor em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas, pelo Dinâmia – Centro de Estudos da Mudança Socioeconómica, do Instituto Superior de Ciencias do Trabalho e da Empresa (ISCTE, Lisboa, Portugal). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2007). É Diretor Executivo do Mapa Mundi. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1484-395X
